BRASÍLIA – A decisão anunciada pelo CEO da Meta, Mark Zuckerberg, de encerrar o programa de combate à desinformação em suas plataformas nos Estados Unidos deu força a uma concepção equivocada sobre o trabalho de verificação jornalística. A atividade não é censura. Não é um cabo de guerra entre opiniões discordantes. Verificação é simplesmente o clássico trabalho jornalístico de sobrepor narrativas sem lastro com fatos apurados com rigor e profissionalismo – e de fazê-lo com respeito às diferenças, sem ofensas pessoais ou a grupos.
Zuckerberg disse que baseou sua decisão na necessidade de “restaurar a liberdade de expressão”, livrando assim os conteúdos publicados do “viés político” dos checadores. O executivo ignorou, porém, que grande parte das verificações ajudaram os usuários das redes sociais a se proteger de notícias falsas com impacto ruinoso sobre suas finanças e de conselhos desastrosos para a saúde.

No Facebook, no Instagram e no Threads, profissionais de checagem em 115 países evitaram golpes financeiros e combateram desinformações que levantaram dúvidas sobre a eficácia de vacinas e de outros tratamentos para enfermidades graves.
Vacinas não provocam autismo. Vinagre não cura a diabetes. Própolis não repele o mosquito da dengue. Drauzio Varella não vendeu remédio que acaba com artrose. Fernanda Torres não disse que estaria “tudo bem” se o coronavírus encurtasse o governo Bolsonaro. O ex-presidente não afirmou que enfermeiros só servem para servir sopa.
Acima está apenas uma pequena amostra de desmentidos feitos nos últimos meses por serviços de checagem no Brasil.
Em sua imensa maioria, os conteúdos que são submetidos à verificação são indicados pelos próprios usuários ou pegos por sistemas de alerta automatizados das plataformas. Quando uma publicação é classificada por verificadores humanos como “falsa” ou “adulterada”, ela não é retirada do debate público. Apenas tem seu alcance reduzido e ganha um rótulo que indica o porquê da classificação. Ao mesmo tempo, o fato profissionalmente apurado é exibido.
Os verificadores são certificados pela entidade apartidária Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN, na sigla em inglês) ou pela Rede Europeia de Normas de Verificação de Fatos (EFCSN). A certificação garante que o trabalho seja feito sob rigorosos critérios de transparência e apartidarismo, revisados periodicamente por avaliadores externos.
O passo a passo da checagem também é exposto, de modo que os usuários possam conhecer os critérios e auditá-los se assim o desejarem. No Brasil, fazem parte desse programa AFP, Agência Lupa, Aos Fatos, Estadão Verifica, Reuters e UOL Confere.
Mark Zuckerberg anunciou no último dia 7 que a Meta, detentora do Facebook, do Instagram, do Threads e do WhatsApp, encerraria o programa de verificação e o substituiria por um sistema de Notas da Comunidade, semelhante ao já adotado pelo X, o antigo Twitter, de Elon Musk. Em pronunciamento nas redes sociais, o executivo contrariou suas convicções antigas a respeito da eficiência dos mecanismos de checagem, afirmando que “os verificadores de fatos foram politicamente tendenciosos e destruíram mais a confiança do que a criaram.” Em uma referência velada ao Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro disse que “países latino-americanos têm tribunais secretos que podem silenciosamente derrubar” conteúdos.
Os critérios do que sejam conteúdos checáveis foram definidos pela própria Meta e devem continuar vigorando nas plataformas da empresa fora dos Estados Unidos. Os mais fortes ataques aos programas de checagens da Meta se originam de grupos identificados com a direita e a extrema direita. Alexios Mantzarlis, ex-diretor do International Fact-Checking Network at Poynter, em artigo publicado no site do NiemanLab, reconhece que numericamente as verificações recaem majoritariamente sobre conteúdos que contrariam as convicções de pessoas daqueles espectros políticos. A explicação dele é a de que as publicações dos usuários de direita e extrema direita superam numericamente, em muito, os conteúdos falsos postados por usuários de esquerda e extrema esquerda.
Considerado uma referência global no tema, Mantzarlis, integrante também da Cornell Tech, em Nova York, analisou 100 alegações falsas escolhidas aleatoriamente e desmentidas recentemente pela PolitiFact, uma agência de checagens parceira da Meta nos Estados Unidos. Só 21% delas diziam respeito a temas “politicamente sensíveis” – enquanto 45,1% das postagens diziam a respeito a temas cotidianos.
“Zuckerberg não mencionou que uma grande parte do conteúdo que os verificadores de fatos têm sinalizado não é discurso político. Em vez disso, é o ‘spam’ de baixa qualidade que as plataformas Meta mercantilizaram”, escreveu Mantzarlis em um artigo recente publicado no site do NiemanLab, de Harvard.
A devastação no debate público causada pela desinformação em temas de fora da polarização política também é realidade no Brasil. Mentiras sobre vacinas que impactam a imunização de crianças e golpes virtuais que levam prejuízos financeiros à população de baixa renda costumam consumir tempo no trabalho de checadores brasileiros. Mais recentemente, uma série de postagens inexatas se aproveitaram da baixa credibilidade das autoridades e dos políticos no Brasil para especularem sobre a possível taxação do Pix. Isso reduziu a utilização desse meio de pagamentos no País.
“Checagem de conteúdo político é apenas parte do trabalho dos fact-checkers. Conteúdos fraudulentos sobre temas como saúde, finanças e crise climática vão viralizar ainda mais se não houver checadores nas redes sociais”, pontuou Daniel Bramatti, editor do Estadão Verifica, ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e integrante do conselho consultivo da IFCN.
Leia mais
Para Tai Nalon, diretora-executiva do Aos Fatos, a decisão da Meta deixa áreas sensíveis descobertas. “É muito popular a desinformação sobre curas milagrosas de doenças, vendas de falsos emagrecedores e golpes aplicados na venda de determinados remédios. Existe uma estratégia de golpistas que utilizam de desinformação para vender produtos. A decisão da Meta pautada em percepção ideológica deixa descoberta várias outras áreas que não estão politicamente expostas”, disse.
Líder da organização que faz checagem e combate desinformação, ela alerta que um conjunto de temas, como os relacionados à vacinação, não tem inicialmente natureza política, mas acabam capturados por segmentos. “É muito difícil distinguir onde começam os interesses políticos por trás da desinformação e a mera desinformação como enganação e poluição do ambiente informacional”, completou.
“Fact-checkers seguem um código de princípios, e um dos itens mais importantes é o apartidarismo. Dito isso, é natural que determinado grupo seja mais afetado por checagens se ele espalha mais desinformação. Estudos mostram que, hoje, é a extrema direita quem mais dissemina falsidades como estratégia de engajamento nas redes”, afirmou Bramatti.
Até o fim do ano passado, o programa de checagem da Meta era algo do que a empresa se orgulhava. Em um comunicado sobre como se preparava para as eleições do Parlamento Europeu, divulgado em 2024, a empresa ressaltou que ao longo dos últimos oito anos “construiu o maior programa de verificação de fatos” das redes sociais “para ajudar a combater a disseminação de desinformação”.
Agora, Zuckerberg mudou o discurso e disse que “os checadores se tornaram politicamente enviesados demais” e mais “prejudicam do que ajudam o processo de criação de confiança”. Os dados oficiais da empresa depõem contra ele.
Um relatório de transparência da Meta, publicado em outubro, mostra que só 3% das checagens realizadas por parceiros da União Europeia acabaram revistas. Entretanto, mais de 86% dos conteúdos rotulados como violentos ou de incitação à violência foram restaurados após reanálise. O número indica que a “taxa de erro” das verificações é mínima, se comparada com outras estratégias de controle de conteúdo.
A mudança brusca acabou por expor um viés do próprio empresário, na avaliação de especialistas. Ele estaria interessado em uma aproximação com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para ganhar um aliado de peso em desafios jurídicos e econômicos que enfrenta.
“É pertinente a leitura de que a Meta age com viés ideológico. Ela joga a culpa de uma política que ela desenvolveu para cima dos parceiros. Durante anos, desenvolveu e usou o modelo e se vangloriou disso. Quando teve a mudança de governo, mudou completamente o discurso e passou a dizer que foi erro dos checadores. É uma iniciativa puramente política”, afirmou Caio Vieira Machado, pesquisador de Oxford.
Sistema de Notas da Comunidade é alvo de críticas
A substituição ao programa de checagens, segundo Zuckerberg, é estabelecer a política de Notas da Comunidade, a começar pelos Estados Unidos. Nesse sistema, são os próprios usuários que apontam alegações falsas e apresentam os desmentidos. A estratégia é repleta de críticas. Uma pesquisa de 2022 de especialistas do MIT sobre a Birdwatch, uma política de checagem comunitária do Twitter, apontou que os usuários são mais propensos a avaliar negativamente ou como inúteis publicações de adversários políticos. Ademais, 90% das notas da comunidade não chegam a ser exibidas para todos os usuários.
Editor-chefe do Projeto Comprova e presidente do Projor, Sérgio Lüdtke, destacou que comentários de leitores sempre atraíram a atenção de checadores. Em muitos casos, eles dão pistas para as verificações ou revelam o impacto que uma determinada peça desinformativa causa em um grupo de pessoas. Mas transferir todo o processo aos usuários pode acarretar menos rigor técnico.
Conclui Lüdtke: “A metodologia de verificação de fatos exige que o checador tenha um compromisso pétreo com o apartidarismo. E uma das críticas mais contundentes que se faz às notas de comunidade é que esse não é um valor exigido e, portanto, nem sempre respeitado”.