OMS sugere aproveitar vacinação contra covid-19 para fazer imunização de rotina

Com 25 milhões de crianças não vacinadas em 2021, organização cria hubs globais de produção para corrigir falhas da distribuição de imunizantes durante a pandemia

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Por Ana Luiza Antunes, Giovanna Castro, Isabela Abalen, Kally Momesso e Sofia Lungui

Com 25 milhões de crianças sem se vacinar em 2021 - 5,9 milhões a mais do que em 2019 -, a estratégia das autoridades globais de saúde para enfrentar a queda na cobertura vacinal mundo afora após a pandemia é integrar a imunização contra a covid-19 com as vacinas de rotina. “Além da emergência da covid, temos emergência de vacinação de rotina, temos de proteger as pessoas contra o sarampo, contra a pólio, contra todas essas outras doenças importantes. E temos de fazer isso em paralelo”, afirmou em outubro, em entrevista coletiva, Bruce Aylward, conselheiro-sênior do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom.

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Com o sistema de saúde sobrecarregado em razão da pandemia de covid-19, a cobertura vacinal global caiu de 86% em 2019 para 81% em 2021. Segundo Aylward, durante a pandemia houve o maior declínio nas taxas de cobertura de imunização de rotina já vistos em uma geração. Mais alarmante ainda, 60% das crianças não vacinadas moram em países como o Brasil, Angola, República Democrática do Congo, Etiópia, Índia, Indonésia, Mianmar, Nigéria, Paquistão e Filipinas.

Mais do que integrar a vacinação contra covid com a imunização de rotina, o aprendizado da pandemia também obrigou as organizações internacionais de saúde a repensarem a distribuição de vacinas e insumos em países de média e baixa renda. “Os países que mais precisam têm de ter os melhores produtos possíveis e um fornecimento seguro a longo prazo, e isso precisa ser feito de maneira integrada e apoiada à vacinação de rotina das populações”, diz Aylward.

Bruce Aylward, conselheiro-sênior do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), defende vacinação paralela entre covid-19 e imunizantes de rotina Foto: REUTERS / Denis Balibouse

Autor do estudo ‘Vaccine apartheid: global cooperation and equity’, publicado neste ano na revista científica The Lancet, o pesquisador de História da Ciência da Universidade de Harvard Simar Bajaj afirmou ao Estadão que não houve uma prioridade dos países em ofertar vacinas para a população fora de suas fronteiras nos últimos dois anos, assim como não houve investimento suficiente para acabar com as doenças nesses locais, afirma Bajaj. “A pandemia foi um grande exemplo de um imenso apartheid de vacinas.”

Para o cientista, o histórico recente retrata como o mundo ressalta as desigualdades já existentes ao lidar com crises sanitárias. “Assistimos ao embarque de vacinas para países do norte, muito mais do que precisavam. Mesmo quando tinham atingido uma taxa de vacinação estável, ainda acumulavam vacinas”, lembra.

A pandemia foi um grande exemplo de um imenso apartheid de vacinas.

Simar Bajaj, pesquisador de Harvard

O desequilíbrio na distribuição global de vacinas fica claro na cobertura vacinal de públicos específicos em países de baixa renda. Embora mais de 12 bilhões de doses de imunizantes contra a covid tenham sido administradas globalmente, apenas 28% das populações idosas e 37% dos profissionais de saúde de países de baixa renda foram vacinados com as primeiras doses da vacina.

Para o regulador brasileiro no International Vaccine Institute (IVI), Gustavo Mendes, a pandemia também provocou uma mudança na maneira como as organizações de saúde encaram novos surtos, acompanham dados epidemiológicos e mapeiam o cenário tecnológico de vacinas. “É um aprendizado que aconteceu com a pandemia e que nos ajudou muito a saber como nos preparar.”

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Aurélia Nguyen, diretora de vacinas e sustentabilidade do Gavi conta que organização ampliou número de fornecedores de imunizantes.  Foto: Tony Noel/Gavi

O aprendizado pandêmico também resultou num esforço para diversificar os produtores de vacinas e a própria produção. Em entrevista ao Estadão, a assessora executiva da Aliança Mundial para Vacinas e Imunização (Gavi), Aurélia Nguyen, disse que a organização passou a trabalhar com 17 fabricantes, a maioria distribuídos em países em desenvolvimento na Ásia e América Latina. Antes, eram cinco fornecedores baseados na Europa e na América do Norte.

“Ao invés de bilhões de doses da vacina da covid todo ano, é mais sustentável garantir que tenhamos fábricas em funcionamento para produção de vacinas de imunização de rotina”, explica Aurélia. “Se tivermos uma próxima pandemia, teremos fábricas fazendo vacinas regularmente que podemos procurar para produzir vacinas pandêmicas.”

Lições da covid

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Reflexo do aprendizado acumulado na gestão da pandemia de covid-19, os hubs globais para vacinas de mRNA criados pela OMS já estão em atividade em países como a África do Sul e o Brasil. Escolhido para representar a América Latina por sua sua experiência na produção de vacina de RNA mensageiro contra a covid-19, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realiza os testes pré-clínicos simultaneamente à compra dos equipamentos para produzir o imunizante.

“Se tivermos sucesso, temos o compromisso de discutir a possível transferência da nossa tecnologia para outros países de baixa e média renda que necessitem, democratizando a distribuição de vacinas no sul global, principalmente na região da América Latina e Caribe”, diz a gerente do projeto Hub OPAS/OMS da Fiocruz, Patrícia Neves. Segundo a pesquisadora, o laboratório Bio-Manguinhos já está compartilhando conhecimento com o Sinergium, da Argentina, e trocando experiências com a Afrigen e a BIOVAC, da África do Sul.

Laboratório do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz, que tem experiência em produção de vacinas com a tecnologia de RNA mensageiro.  Foto: Bernardo Portella

Diretora-Geral adjunta da OMS para acesso a medicamentos e produtos de saúde, a brasileira Mariângela Simão diz que a diversificação da produção de vacinas e insumos tornou-se urgente a partir da pandemia. “Também estamos tendo essa dificuldade com a cólera e a monkeypox (varíola dos macacos), há poucos produtores concentrando a produção de vacinas”, explica. O objetivo, segundo Mariângela, é ampliar o movimento de transferência de tecnologia e conhecimentos necessários para fabricar vacinas de RNA mensageiro em escala e de acordo com os padrões internacionais.

Luana Araújo, médica infectologista do Hospital Albert Einstein que integrou o Covax - consórcio criado pela OMS para arrecadar dinheiro para distribuir vacinas da covid-19 aos países mais pobres a preço de custo -, diz que o aprendizado com a pandemia mostrou que a posição de dependência dos países de média e baixa renda é “extremamente perigosa”. “Essa é uma lição que, em relação ao planejamento futuro, precisa ter sido aprendida para que outros países do mundo tenham uma distribuição mais efetiva da produção de recursos, pelo menos para resguardar as necessidades em caso de uma nova crise.”

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Bajaj, de Harvard, reforça que as mutações do coronavírus mostraram que o controle de surtos em âmbito nacional não é suficiente para conter eventuais novas pandemias. “O desafio é ultrapassar esse sentimento nacionalista e reconhecer realmente que, por vezes, a melhor forma de proteger os seus cidadãos é ter uma visão global”, afirma.

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Expediente

Reportagem | Alunos do 1º Curso Estadão de Jornalismo de Saúde: Aline Albuquerque, Ana Luiza Antunes, Beatriz Bulhões, Beatriz Leite, Camila Pergentino, Camila Santos, Fernanda Freire, Flávia Terres, Francielle Oliveira, Giovanna Castro, Guilherme Lara da Rosa, Guilherme Santiago, Isabel Gomes, Isabela Abalen, Iuri Santos, Kally Momesso, Katharina Cruz, Layla Shasta, Letícia Pille, Mariana Macedo, Matheus Metzker, Milena Félix, Pedro Miranda, Pedro Nakamura, Rafaela Rasera, Sofia Lungui, Stéphanie Araújo, Thais Porsch, Victória Ribeiro e Vitor Hugo Batista Coordenação e edição | Carla Miranda, Andréia Lago e Ítalo Rômany

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