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De cravo novo na chanca

Gozador, mal-humorado, amigo de fé - o produtor musical Pelão, de sua mesa cativa no Bar do Alemão, fez história na cena musical do País. Adoniran, Cartola e Nelson Cavaquinho atestam

Por André de Oliveira
Atualização:

A noite fria vai avançando enquanto o papel cor de jornal descansa sobre a mesa. Ele aguardará até que a clientela não tenha outro lugar para sentar. É que aquela mesa, a terceira a partir da caixa registradora, está reservada. Seu dono, diz-se à boca pequena, não tem papas na língua e, se encontrar alguém que o desagrade sentado no seu pedaço, é capaz de arrumar tempo quente. Mas o lugar privilegiado, defronte dos músicos, anda mais vazio que de costume. Quando todas as outras mesas estão ocupadas, um grupo de amigas acomoda-se ali. Não antes de o garçom retirar o papel cor de jornal em que se lê: Pelão.

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Frequentador do Bar do Alemão desde quando sua barba ainda tinha todos os fios pretos, João Carlos Botezelli é um dos maiores produtores musicais do Brasil. Para não restar dúvidas: seu nome de guerra, Pelão, está na contracapa dos álbuns de Adoniran Barbosa, Nelson Cavaquinho, Cartola, Carlos Cachaça, Raul de Barros e Donga. Mas foi só à base de muita insistência que o produtor conseguiu gravadoras interessadas em produzi-los. "A partir desses discos, eles deixaram de ser vistos como figuras folclóricas e caricatas", diz o jornalista e musicólogo Tárik de Souza. "O trabalho do Pelão é absolutamente fundamental para se entender a música popular brasileira."

Muita coisa mudou na MPB e no País desde que Pelão produziu os sambistas, nos anos 1970. Mas ali na Av. Antártica, em São Paulo, espremido entre um shopping center e o Palestra Itália - que agora, como todos os campos modernos, leva o nome de arena -, está o lendário Alemão. E mesmo que Pelão, depois de mais de 40 anos de expediente etílico, ande meio ausente por questões de saúde, sua presença já está eternizada nas paredes do bar hoje comandado pelo músico Eduardo Gudin.

Entre fotos de Paulo Vanzolini, Inezita Barroso e Adoniran Barbosa destaca-se um retrato de Pelão, aos 30 anos, dirigindo Nelson Cavaquinho. O músico, em pose característica, empunha o violão na altura do peito, canta e olha para o além. O produtor, com o dedo em riste, aponta para a frente, compenetrado com a gravação. A imagem explica o começo de uma carreira que daria voz a músicos havia muito esquecidos. O disco de Nelson, que este ano completa 40 anos, foi o primeiro de Pelão.

"Você já produziu um disco, garoto?", me pergunta, enquanto bate a base do maço de Marlboro vermelho contra a mesa, fazendo saltar um cigarro. "Pois é. Eu também nunca tinha produzido." Com esse mesmo espírito autoconfiante e um tanto desafiador, ele entrou em 1973 no escritório da Odeon, na Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro, apresentou-se a Milton Miranda, diretor artístico da gravadora, e ofereceu produzir o disco de Nelson Cavaquinho. A proposta foi aceita de pronto, para sua surpresa, pois a resposta que costumava ouvir era: "Aqui não é asilo de velho".

O que resultou das gravações foi o principal disco da carreira do músico, aquele que ajudou a eternizá-lo. Contradizendo o que comumente se fazia com sambistas da velha guarda, Pelão dispensou orquestra, colocou Nelson tocando violão - que, apesar do apelido Cavaquinho, era seu verdadeiro instrumento - e fez questão de que ele cantasse em todas as faixas do LP. "Porra, tem nego que acha lindo o Louis Armstrong cantando, mas o Nelson não podia, né? A voz dele era linda. Naquela rouquidão você via todos os balcões de bar onde ele encostou a barriga, ou melhor, o cemitério de frango."

No Jornal do Brasil, o crítico musical José Ramos Tinhorão assinalou: "Apesar da lenda criada em torno da figura do curioso trovador de cabelos brancos, faltava uma prova em disco. É essa prova que a Odeon vem oferecer agora com o seu LP Nelson Cavaquinho, que constitui, mais do que um documento de genialidade, uma obra de amor". Antes, o músico havia gravado dois discos de pequena circulação, mas nenhum o retratava com tamanha fidelidade.

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Há quem diga que Pelão é difícil. Um tanto turrão, um tanto mal-humorado - dependendo do humor, capaz de algumas grosserias. De fato, o estilo "sempre de cravo novo na chuteira", como ele define seu jeito pronto para divididas, pode assustar. Os amigos, no entanto, tratam de desfazer o mito. "Ele é ranheta até a raiz do cabelo, mas é a pessoa mais solidária que conheço", define o jornalista e bandolinista Luís Nassif, que costuma tocar às segundas no Alemão.

São inúmeros os "filhos", "compadres", "tios" e "sobrinhos" que Pelão diz ter. Todos merecem tratamento especial, todos recebem ligações em seus aniversários e nenhum vai embora de sua casa ou da mesa do bar sem um beijo carinhoso e um eventual tapinha no rosto. "Respeitar os mais velhos e ter amigos, minha vida sempre foi assim, garoto."

Ele se vangloria de não poder contar nos dedos das mãos a quantidade de pessoas que pode chamar de amigo. Diz que teria sido impossível gravar Nelson Cavaquinho não fosse a proximidade que tinha com o músico. E isso vale para todos os outros. "Primeiro eu queria conhecer o cara, pô. Não adianta eu chegar e botar o cara no estúdio. Aí eu não estou gravando ele. Eu tenho que saber como é a vida dele, onde nasceu, quem são os amigos, o que veste, o que bebe. É por aí que eu vou sentindo."

Descendente de italianos, nasceu em São José do Rio Preto em 1942, mas logo aos 3 meses veio com a família para a capital. Em São Paulo, sentiu inveja do homem do campo que podia andar de pé no chão e aos 14 anos foi estudar em uma escola técnica agrícola, em Pirassununga. Debaixo de uma chuva de socos e pontapés - parte de um trote aplicado pelos veteranos -, atravessou um corredor polonês da extensão de um campo de futebol e deixou de ser "pele fina, o menino da cidade". Virou Pelão.

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De volta a São Paulo, encantou-se com a orquestra Simonetti, regida pelo italiano Enrico Simonetti, que dava shows em bailes de debutantes, casas de espetáculo e programas de TV. Em pouco tempo, o maestro levaria Pelão para trabalhar com a orquestra na Excelsior. De lá iria para a Tupi, onde participou das produções dos Festivais de Música Popular Brasileira. Durante esses anos 1960, foi travando amizade com os músicos cujos discos produziria na década seguinte. Mais: foi nessa época que consolidou sua ideia de Brasil. "Queria o povo vindo debaixo cantando. Era a revolução pela cultura. Ideia maluca, mas valeu a pena."

Hoje, aos 71 anos, tamanhão imponente, Pelão carrega uma barba grisalha espessa e uma voz esculpida pelo cigarro e pela bebida - que, mesmo após um AVC, não abandonou. Sua fala é lenta, reflexiva; rápida apenas se está dando alguma tirada. Às vezes se enrola na primeira sílaba de uma palavra e, sempre que perguntado se tal músico é melhor que outro ou qual seu disco preferido, coça entre as sobrancelhas e sai pela tangente. "Não vou falar um nome, mas têm vários." Arrisco. Nos anos 1970 estão suas principais produções; quero saber se essa foi a melhor década de sua carreira. A resposta é um comentário: "Como passou rápido".

Em 1974, Pelão fazia sua ronda habitual pelos bares paulistanos - que começava no Riviera, na Rua da Consolação, e acabava no Alemão - quando topou com Aluízio Falcão no Jogral, bar do músico e jornalista Luiz Carlos Paraná. Aluízio era diretor musical da gravadora Marcus Pereira, e Pelão, já com algumas bebidas na cabeça, ajoelhou-se diante dele e repetiu um pedido que fazia havia anos a outras gravadoras: "Me deixa gravar o Cartola". Só no dia seguinte, curado da bebedeira, ele ouviria a resposta positiva.

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A Marcus Pereira, que levava o nome de seu fundador, foi uma gravadora de vida breve e intensa. Em sua raiz estava a vontade de mapear e resgatar as diferentes manifestações da música brasileira. Muito simbólica dessa intenção era a coleção Música Popular, que dedicou quatro discos a cada região do País. Pelão, já incorporado à equipe, foi o responsável pela produção dos oito LPs do Centro Oeste/Sudeste e do Sul, em que aparecem modinhas, lundus, maxixes, chulas e milongas.

Cartola, em 1974, já havia sido redescoberto por Stanislaw Ponte Preta lavando carros no Rio de Janeiro. Já tinha aberto e fechado o famoso bar Zicartola. Mas ainda não tinha um disco solo. Foi isso que a iniciativa de Pelão, somada ao interesse da Marcus Pereira, veio corrigir. Mas depois de o LP finalizado, algumas reticências de Marcus quanto à gravação atrasaram seu lançamento. "Puta que me pariu, ele confundiu a cuíca do Marçal com o latido de um cachorro!", reclama Pelão, ainda com algum ressentimento. O disco, porém, seria lançado e entraria para a história.

Apesar das desavenças entre Pelão e Marcus, os anos em que o produtor esteve no selo foram únicos. Ele ainda produziria a História das Escolas de Samba, registro de quatro escolas cariocas; Brasil, Trombone, do trompetista Raul de Barros; e um álbum de Donga, compositor de Pelo Telefone, primeiro samba registrado na história.

Pela Odeon, Pelão produziu os dois primeiros discos de Adoniran Barbosa, que ajudaram a consolidar a importância do samba paulistano. "Quando morei em São Paulo, os paulistanos achavam que ele era apenas um comediante, e alguns tinham vergonha do modo como ele cantava", comenta Tárik de Souza. Na contracapa do segundo disco, o crítico literário Antonio Candido encerra a questão: "Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua antivoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, Adoniran é a voz da cidade".

Depois da década de 1970, Pelão foi diretor musical da TV Globo por muitos anos, mas sempre continuou ligado à produção de discos, festivais e shows. Saiu um pouco do âmbito dos sambistas e produziu álbuns de Roberto Corrêa, Raphael Rabello, Radamés Gnatalli e até Nino Rota, o maestro italiano. Morador de Perdizes há mais de 30 anos, Pelão tem muitas ligações com a cidade, mas suas afinidades musicais não ficaram em regionalismos. Aldir Blanc, em matéria publicada no Estado de S. Paulo em 1996, define o amigo como um paulistano carioca; já Toninho Alves, do Quinteto Violado, diz conhecer o Pelão nordestino; ele mesmo se diz simplesmente brasileiro.

No escritório de seu apartamento há uma cacofonia de lembranças, livros, instrumentos musicais, discos e quadros. Na prateleira, uma bicicletinha de metal com que Adoniran presenteava alguns amigos. Em cima da estante, a cuíca de Marçal. Pendurado em cima da janela, um chapéu de Paulo Vanzolini. Na parede, uma partitura de título Pequena, assinada por Radamés Gnatalli e por Pelão, na única vez em que ele se meteu a fazer música - e uma homenagem a sua mulher, Maria Cristina, com quem tem duas filhas. Tudo está ali. Menos uma coisa: a boemia. Essa, quando consegue driblar as recomendações médicas, Pelão ainda reencontra no Alemão, enquanto segura o copo entre o dedo mínimo e o polegar, uma de suas marcas registradas.

"Ele é um camarada único, completamente singular. Gozador, amigo dos músicos que gravava", define Tárik. De fato, Pelão se parece mais com seus queridos amigos sambistas do que com musicólogos. Nele, é possível perceber a mesma identidade ítalo-paulistana de Adoniran Barbosa, a mesma voz rouca e disposição boêmia de Nelson Cavaquinho, a mesma antítese "alegria e dor" das letras de Cartola. Avesso a academicices, nunca fez faculdade e se irrita quando querem saber seu título: "E lá existe universidade para ensinar a sentir?".

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