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O jornalista Fernando Gabeira escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Liberdade ilusória, liberdade real

É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de expressão absoluta, sobretudo no tempo das redes sociais. Um debate transparente e um acordo nacional sobre o tema são mais que necessários

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A mais recente manifestação promovida por Bolsonaro, no Rio de Janeiro, reuniu menos gente e marcou também uma inflexão tática. Em São Paulo, em fevereiro, a ênfase era evitar a prisão de Bolsonaro e lembrar os presos do 8 de Janeiro, por meio do pedido de anistia. No Rio, o tema central era liberdade de expressão e apoio internacional.

A experiência acabou mostrando que esse caminho era mais promissor por duas razões. As denúncias de censura são potencialmente capazes de impressionar estrangeiros, especialmente norte-americanos. Culturalmente abertos para a liberdade de expressão, alguns são ingênuos o bastante para achar que suas leis devem valer para todo mundo.

Um outro fator importante é a abertura das grandes plataformas para a ideia de liberdade de expressão absoluta, fator essencial para a garantia dos lucros. No momento, Elon Musk e seu X estão em choque com o governo da Austrália, em torno da divulgação das imagens de um ataque a faca numa igreja. O governo acha que a divulgação estimula o crime.

Em termos teóricos, não seria necessário discutir com Bolsonaro sobre liberdade de expressão, pois é defensor da ditadura militar, aceita a tortura como forma de luta e embarca nessa luta por oportunismo.

O problema central são as pessoas que genuinamente defendem a liberdade de expressão como um valor absoluto e não aceitam nenhum tipo de limitação.

Recentemente, no Brasil, o jornalista que divulgou os Twitter Files, Michael Shellenberger, dizia orgulhosamente que a Corte americana permitiu uma manifestação nazista num bairro judeu, em 1977.

Nem todo país do mundo faria isso e por razões bem claras. Um grande teórico da liberdade, Isaiah Berlin, diria apenas que a liberdade do lobo é a destruição do cordeiro.

Berlin fez sua célebre conferência sobre o tema em 1958. Mas, ainda assim, seus argumentos são válidos. O que decorre de suas teses é que uma sociedade pluralista pode não proteger o conjunto completo de liberdades liberais, mas pode ser mais humanamente desejável do que uma sociedade liberal na qual alguns requisitos de decência mínima são violados.

Depois da 2.ª Guerra, ficou bastante evidente e acabou se consolidando em tratados que algumas práticas são tão hostis à vida humana que sua erradicação deve ter prioridade. Escravidão, tortura e perseguição racial são alguns exemplos.

Numa sociedade pluralista vista por ele, a liberdade pode entrar em choque com a igualdade, segurança e outros valores de coesão comunitária e social. Neste caso, não se pode garantir à liberdade qualquer tipo de prioridade absoluta.

O trabalho inicial de Berlin foi definir as causas do totalitarismo como uma espécie de lição do século 20. Embora adote muitos valores iluministas, ele considera que o Iluminismo é responsável, de alguma forma, por um modo de pensar religioso que entra em choque com a realidade. O problema central, na sua opinião, é muitos acharem que os valores participam de um todo harmônico e não podem estar em contradição entre si, e, se estiverem, é porque há algo errado entre eles. É uma suposição de harmonia sem a qual seria difícil imaginar Deus, a Verdade Última. Um choque com a realidade contraditória de alguns valores.

Creio que essa visão harmônica e religiosa está na base da defesa de uma liberdade de expressão absoluta, sem a qual a realidade torna-se difícil de suportar.

Recentemente, esse debate eclodiu na Escócia em torno do Hate Crime Act (ato contra o discurso do ódio). A autora de Harry Potter, J. K. Rowling, insurgiu-se contra a lei e desafiou ser presa na terra onde o Iluminismo floresceu. Ela parece não aceitar que algumas palavras podem ajudar a matar, sobretudo jovens transgêneros. Eles são o alvo de oposição de Rowling.

Aqui, no Brasil, há dificuldade de avaliar todo o processo que levou à retirada de posts e contas na internet. Só poderei fazê-lo quando puder estudar os casos detalhadamente, inclusive com a fundamentação.

No entanto, tive a oportunidade de ver pessoas incitando os generais a aderirem a uma virada de mesa, chamando-os de covardes e melancias por obedecerem aos resultados legais das eleições. A conclamação aberta a um golpe militar pode até ser permitida nos EUA, mas deveria sê-lo no Brasil, vitimado por golpes inúmeras vezes em sua história? Os neonazistas podem ser tolerados nos EUA, mas deveriam sê-lo na Alemanha, lançada numa tragédia sem fim por essa corrente política? Mesmo nos EUA, qualquer alusão a um ato terrorista, qualquer indício de preparação de algo nesse sentido, é imediatamente reprimido.

É difícil aceitar a ideia de uma liberdade de expressão absoluta sobretudo no tempo das redes sociais. Por outro lado, a ausência de uma discussão mais clara permite à censura uma latitude que ela não pode ter.

Um debate transparente e um acordo nacional sobre o tema são mais que necessários. Uma vez que as regras fiquem absolutamente claras, tornam-se mais difíceis o abuso e o exagero.

As forças políticas, no que têm de mais equilibrado, deveriam refletir sobre isso. As plataformas estão focadas no lucro. A ausência de regras claras acabará sendo pior para todos: será possível um ataque selvagem seguido de uma repressão também selvagem.

No momento todos perdem, embora a direita trabalhe com a ilusão de que se possa vitimizar para dar a volta por cima nas inúmeras acusações que sofre.

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JORNALISTA

Opinião por Fernando Gabeira

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