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Um cachorro com 14 donos

É ruim a supressão da figura do relator na reforma tributária. Ao dar protagonismo aos 14 integrantes do grupo de trabalho, Lira parece mais interessado em sua sucessão que na reforma

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Por Notas & Informações
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O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de dois grupos de trabalho para tratar dos projetos de lei que vão regulamentar a reforma tributária sobre o consumo. Cada um desses colegiados será composto por sete deputados. Eles terão 60 dias para concluir as análises, mas o prazo poderá ser prorrogado, se necessário. Não haverá um relator ou coordenador. “Todos serão relatores, todos serão membros. Na hora de cumprir os ritos regimentais, a gente escolhe um deles para assinar o que todos vão fazer conjuntamente”, afirmou Lira.

Entende-se que o presidente da Câmara queira contemplar o maior número de partidos na distribuição de propostas relevantes como as da reforma tributária. No entanto, não parece ser uma boa estratégia para quem diz tratar o tema com a prioridade que ele merece. Como diz o ditado popular, se um cachorro que tem dois donos morre de fome, o que dizer de um que possui 14?

O longo processo de regulamentação da reforma não começou bem. O primeiro projeto de lei, que contempla a maioria das regras da proposta e trata dos novos impostos que incidirão sobre bens e serviços, chegou às lideranças da Câmara há quase um mês, entregue pessoalmente pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Não há justificativa plausível para tanta demora em definir uma estratégia para a tramitação desse primeiro texto. São mais de 360 páginas e um total de 499 artigos que abordam desde a composição da cesta básica aos regimes específicos para diversos setores econômicos.

O segundo projeto, a ser remetido ao Legislativo nos próximos dias, trata de questões ainda mais delicadas. Há receio, por parte de alguns governadores, sobre a criação do Conselho Federativo, órgão que ficará responsável pela arrecadação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela distribuição de suas receitas entre Estados e municípios.

Tampouco se explica uma mudança tão radical na postura de Lira sobre um mesmo tema em tão pouco tempo. Para a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criou as bases da reforma, promulgada no fim ano passado, Lira definiu como relator o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que já havia elaborado um parecer sobre a mesma PEC em 2021.

Aprovar uma proposta tão ampla era uma tarefa politicamente difícil, mas Ribeiro conseguiu construir um consenso mínimo com os parlamentares e os setores envolvidos. Ganhou protagonismo, a ponto de se tornar o candidato natural para analisar os novos textos. Era o nome preferido do governo, mas foi deliberadamente escanteado por Lira e não integrará nem mesmo os grupos de trabalho.

No modelo proposto por Lira, cada partido pode indicar um membro para ocupar as 14 vagas dos grupos de trabalho. “É mais democrático”, disse ele. Se esse fosse o ponto, ainda mais democrático teria sido optar pelas comissões, que respeitam a composição dos blocos da Câmara e a representatividade dos partidos. Nos grupos de trabalho, no entanto, Lira tem discricionariedade para selecionar – e, sobretudo, para excluir – quem quiser.

Em qualquer proposta legislativa, a figura do relator é fundamental para dialogar com os setores diretamente envolvidos. Não se trata de um cargo decorativo. Além de domínio técnico sobre os pormenores do texto, sua liderança é crucial para contemplar e rejeitar sugestões de mudanças no texto final. É uma posição que requer aguçada sensibilidade política. Pode ser a diferença entre a aprovação e a rejeição de um texto.

O tempo para analisar os textos da reforma tributária é curto e não pode ser desperdiçado em barganhas políticas. Trata-se de uma etapa crítica da reforma, sem a qual as necessárias mudanças do sistema não serão materializadas.

Um parlamentar experiente como Lira sabe bem disso. Mas tudo indica que a reforma tributária entrou no centro da disputa antecipada pela presidência da Câmara, na qual o deputado tem todo o interesse de indicar seu sucessor. Deixar a reforma naufragar, no entanto, é um preço alto demais para qualquer liderança que almeje um futuro político. Ainda há tempo de corrigir esse rumo.