PUBLICIDADE

Zé Celso [1937-2023]: “a utopia do teatro do futuro”

Leia artigo do diretor de teatro publicado no Estadão em 1995 e relembre a sua obra teatral nas páginas do jornal

Foto do author Edmundo Leite
Por Rose Saconi , Carlos Eduardo Entini e Edmundo Leite
Atualização:
Zé Celso durante manifestação para a desapropriação do terreno ao redor do Teatro Oficina, em fevereiro de 1983 Foto: GERALDO / ESTADÃO

José Celso Martinez Correa tinha 22 anos em 1959 quando encenava a sua segunda peça, “A incubadeira”. Já naqueles dias de teatro amador, o talento do encenador era destacado nas páginas do Estadão:

PUBLICIDADE

“O outro grupo, a Oficina, pela quantidade e qualidade de seus elementos, dá nos a esperança de que venha a ser, em dia porventura ainda distante, o “Tablado” de São Paulo. Conta para isso inclusive com um autor de vinte e dois anos: José Celso Martinez Correia.

“A incubadeira”, sua segunda peça, revela preocupações típicas da adolescência: como a primeira, trata desse doloroso momento em que o homem se afirma desfazendo violentamente os laços familiares.

Mas José Celso vê objetivamente a questão, não ficando apenas na revolta contra a inconsciente tirania materna ou na exaltação sentimental de seu jovem protagonista”, diz o texto não assinado “Duas representações amadoras, publicado na página de teatro do jornal em 13 de setembro de 1959.

Entre outras análises de aspectos de peça, o texto voltava às luzes a Zé Celso:

“José Celso sabe observar, sabe ver e ouvir - e sabe falar a linguagem do teatro. O seu drama passa bem do papel para o palco, o que é outra forma de dizer que passa bem do palco para a plateia. (...)

“Os nossos autores jovens à volta do Teatro de Arena inclinam-se para o teatro político ou de sentido social. José Celso faz exceção: é primordialmente um psicólogo, interessado nas reações individuais. A incubadeira é um espetáculo particularmente indicado para as pessoas que gostam de surpreender o talento artístico no seu nascedouro.

Publicidade

Alguns momentos dessa longa e profícua carreira foi relembrada por Zé Celso no artigo “O Futuro da dramaturgia depende de ‘bancantes’“.

“Nos ventos fortes dos fins de 50, com os toques batucados numa Remington, foi que recebi meu ‘xamado’ para o teatro. Me entendi comigo então como um dramaturgo saindo da ‘incubadeira’.”

Além de falar da importância do patrocínio, relembrou alguns pontos de sua obra e analisou o teatro como um todo. Leia o artigo na página original, ou na transcrição no fim dessa notícia, e veja trajetória do diretor nas páginas do Estadão.

Estadão - 7/10/1995

Artigo de José Celso Martinez Corrêa publicado no Estadão em 7 de outubro de 1995. Leia a transcrição no final deste conteúdo. Foto: Acervo/Estadão

Inauguração do Teatro Oficina

Estadão - 16/08/1961

Página do Estadão de 16 de agosto de 1961 Foto: Acervo/Estad


Incêndio no Teatro Oficina

Estadão - 1/6/1966

Página do Estadão de 1 de junho de 1966 Foto: Acervo, Estad

Reconstrução do teatro

Estadão - 30/5/1986

Página do Estadão de 30 de maio de 1986 Foto: Acervo Estadão

Clima de orgia na seleção de atores para “As Bacantes”

Publicidade

Estadão - 23/9/1987

Página do Estadão de 23 de setembro de 1987 Foto: Acervo Estadão


Entrevista para a série ‘Encontros Notáveis’, do Caderno 2

Estadão - 12/8/1995

Página do Estadão de 12 de agosto de 1995 Foto: Acervo/Estadão


Peça em homenagem ao irmão

Estadão - 21/12/2000

Página do Estadão de 21 de dezembro de 2000 Foto: Acervo/Estad
Zé Celso em foto de junho de 1978 Foto: ROLANDO / ESTADÃO
O ator e diretor em sua casa. Foto de agosto de 1985 Foto: José Diorio/Estad

Estadão - 7/10/1995

Futuro da dramaturgia depende de ‘bancantes’

É preciso que se apresente o bacante que banque, pois a riqueza da vida está no capital de risco

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORREA

Especial para o Estado

A utopia do teatro do futuro é estar presente. Sempre. Agora. Nesta primavera, pra mim, tem um topos, um lugar, um enredo, um gênero, um nome. Modéstia à parte vou dizer é Bacantes, ópera de carnaval brazileira, uma tragycomedyorgia. E um xamado: I o! Para uma noite dia acontecer o nascimento de um Deus público. Nos “ventos fortes” dos fins de 50, com os toques batucados numa Remington, foi que recebi meu xamado para o teatro. Me entendi comigo então como um dramaturgo saindo da “incubadeira”.

Publicidade

No “Seminário de Dramaturgia” do Teatro de Arena, fui excomungado, pelo pecado de ser “pequeno burguês e psicológico”. Tive vergonha das peças, apesar das encenações terem resultado maravilhosas. Perdi as duas. Só fui encontrar no arquivo da polícia que ficou com a USP quando caiu a censura. Eu escrevia Cacilda!!! e buscava todo repertório encenado dela. Já era tarde.

Minha vida na arte já estava viciada com a escritura na cena com a direção, e no teatro da tragédia cómica, sexual da vida e com o trópico sem pecado, que não tinha mais volta para o drama passado. Queria um futuro, em que presente-passado-vida-teatro + o que atrapalha viver assim, ficasse junto. Tudo junto: orgya. Eu já era um fantasma da dramaturgia da vida normal, não tinha mais lugar nela. Ou inventa-va outra futura ou já tinha acabado.

“Cacilda!!!” me possibilitou virar do avesso o hemisfério norte dramaturgo puritano. Hoje, tenho de inventar as condições materiais pra tragycomedyorgia ser encenada, pra continuar escrevendo mais vida. O futuro passou a ser uma condenação adorada por meu presente. É o que sou, o que quero, futuro.

Bacantes, que escrevi em parceria com um quarteto de bacantes, e Cacilda!!! já não são mais dramaturgias, mas tragicomediorgyas. É Eurípedes e é Cacilda, mas numa forma de ressurreição ligada à ressurreição de Dionytzios no teatro como culto deste Deus, como ‘Tiato’, acontecimento histórico que enreda as dramaturgias públicas políticas, religiosas, teatrais deste momento, num ritual musical de passagem em forma de comunhão, comida, bori. Uma carismática eucaristia do futuro presente.

Este futuro é um cogumelo muito arcaico sertanejo conselheiro, em Convênio com Cristo, como timbala Carlinhos Brown e na presente o nova ordem ordinarum mercadológica liberal, fundamentalista, monoteísta e mono gãrnica, está embutido como a vida está na morte.

Ontem assisti à diva bacante Vera Fischer, nossa primavera desejosa, querendo fazer Oscar Wilde este ano, no centenário dele. Só este ano, insistia furiosa. Talvez tivesse conseguido “para o ano que vem, mas não quer assim, não quer “alhures”. Agora ou nunca.

Aquela mulher, a única que se sabia mortal ali, insatisfeita, linda e imortal, plena potência cênica erótica em transmissão direta, pronta para se dar em ce(n)ia numa amostra da festa do boi de parentis, cercda por personagens bém mais desinteressantes: marketeiros, gente muito ‘satisfeita com agenda toda preenchida de “carne freezer.

Publicidade

Ela era a encarnação do desejo de presença utópita do futuro num presente que, messiânico, está sempre esperando o futuro como se fosse uma coisa que não está aqui. E que virá em linha reta com a chegada de algum messias, não importa a cara, Jesus ou plano econômico. A carne fresca da baca Vera chega trazendo em si o futuro presente. E se vê a vida, o futuro, a utopia, o teatro, o fim do drama, feito mulher.

A vida rola eterna e o teatro é o topos, onde Utopia é sempre possível, ainda que não tão “importante”. É o lugar onde o encontro da vida ao vivo com a arte pode se dar e revelar o futuro passado que está presente em nossas vidas em cada momento.

Más para acontecer essa possibilidade do teatro ser o “pau nosso de cada noite”, na hora certa, onde ele baixa inevitável como em Vera, em estado de gerar. Vera diz: “Se não for uma peça, um filho.” Aí, tem que se mexer na dramaturgia clássica de classe dominante, na forma como o teatro se acomoda e ‘não se rebela, antes se submete, ao ‘teatro do espetáculo messiânico da nova ordem social.

Uma nova ordem pede uma nova desordem, claro. É só estudar a história da vida para ver que “a ponta do barbante não tem fim”.

Invenções estratégicas são necessárias para colocar o presente do futuro presente, presente na cena do teatro. Para isso, é necessário contracenar teatralmente com a comédia dos costumes da nova ordem.

Dar ao vivo, de presente, uma faixa cor-de-rosa de cetim, para esta cena lesa, ainda à espera da chegada futura do Godot do ano 2000.

Teatro, como diz tia Oscar Wilde, dá em sociedades nobres. Quer dizer, é filho de uma dramaturgia da sociedade que coloca no centro a importância de estar vivo e ser mortal, do ‘é hoje só, amanhã não tem mais”. Assim foi no século de Péricles que deu tragédia grega, no de Elizabeth, Shakespeare, no da vontade de poder descolonizadora tenenista ou varguista (sei lá como chamar isto que hoje é maldição do stalinismo liberal) deu a antropofagia, Villa-Lobos, Bidu Saião, Oswald.

Publicidade

No desenvolvimentismo, JK deu Nelson, Cacilda, bossa, cinema novo, no aqui agora do tempo das multidões jovens dos anos 60, jorrou tropicalismo música, cinema, teatro, política, artes plásticas, Plínio Marcos e Cacilda Becker de nova Antígona Chanel no teatro da agitação política de 68.

Nossa época de aparência,repito: aparência, pouco nobre e muito pobre, onde pra poder qualquer coisa, como sobreviver, por exemplo e não ser pra sempre matematicamente “cortado”, somos convidados a viver fuçando, lambendo, babando, o capital especulativo, empregado da abstração econo micista. Temos que tagarelar nas TVs e colunas para garantir a miséria social e dar vida a “ela”, a moeda, a “real” que se recusa a virar matéria-prima concreta, investimento produtivo, comida devorável, esterco.

Os diretores desta dramaturgia são tecnocratias que estudaram nos me lhores colégios ingleses e americanos e deram em marketings boys prudentes e mauriciosos, de CD-ROM, books, ba dalando por aí, oferecendo a droga do investimento nos juros da alta metafisica especulativa. Quanto mais nada,mais abstrato, mais fácil vende.

Os mestres espirituais, os gurus, são os messiânicos “carismáticos” sem carisma, sem charites, graça, numa guerra sem graça de concorrência entre religiões torcidas. Verdades absolutas, bancadas, porque alimentam a “ética”, a “moral”, a “segurança”, o medo de cair na vida, no momento que poucos podem subir.

Santa Joana dos Matadores, de Brecht, é um rito a ser feito pra revelar o passado desse modernismo e desses autos da fé. Enfim o fundamentalismo liberal, moedeiro, mo nogamoteísta, por Alá ou por Jesus, filho do medo geral, dramaturga a vida e o teatro, mata a utopia adiada com seu exército da salvação das almas pra economia do nada.

A presença teatral então olha para essa damaturgia e para suas musas, como já olhou para os militares. Não precisa de guerrilheiros, quer a paz da contracenação, da compreensão, do teatro da oposição dos contrários, a dita democracia. Mas será preciso esfregar um pouquinho de libido nas musas da nova ordem pro teatro do futuro que trazemos na nossa tragicomeydorgya não ser mais adiada. Pode até ficar nos livros, nos vídeos, mas a tragicomediorgya se faz ao vivo agora ou não se faz como o Wilde de Vera.

Teatro é assim. Pode deixar embriões como os ovos sonhados por Gordon Graig que escreveu numerososas encenações que um dia poderão ser ressuscitadas vivas por encenadores que virão, agora, com a realidade virtual que ele já trazia em seus delírios cênicos.

Publicidade

Mas teatro é do tempo, de cada tempo,o futuro pós mortem não nos cabe. Só o mortal, presente esse sim que planta a imortalidade. Que a nós vivos agora cabe semear.

Os atores trazem o que têm a fazer em cena no curto tempo de vida que lhes foi dado, ou botam este ovo ou ele vai pro vanishpoint, para ressuscitar em outras encarnações ou não. Aí será outro teatro, outra dramaturgia. Os textos podem ser refeitos novos, podem ser eternos, mas a eternidade do texto vivo presente, de sua dramaturgia viva, é desafio dos que estão vivos agora.

Este ano é o de um século que Oscar Wilde escreveu A Importância de Ser Prudente. É uma peça eterna, mas se eu quiser fazê-la eterna agora, tenho que reinventá-la. Se eu tiver de ressuscitá-lo vai por exemplo de prudente para “pelintra”. Zé Pelintra chega. Pode haver encenações prudentes, mas terão o cheiro de mofo dos salões de teatro da ordem liberal.

Apesar de estar ameaçado de prisão como Oscar, minhas musas são outras. E minha dramaturgya está ligada a uma cultura de carnaval que põe, quer queira ou não, a dramaturgia do Hemisfério Norte de ponta cabeça, inverte o cânone Hamletiano para os trópicos do mundo e do corpo. Leva a cultura do gozo do carnaval, a do Deus incorporado da umbanda e do candomblé, as corografias indígenas como campo de um outro futebol da emoção e do riso.

Mas só vem à tona se estiver à altura da música popular brasileira do passado presente, que já incorporou isso e se incorporar também, nem que for só como vodu, a personagem, entidades dos que ainda não incorporaram essa cultura e que por isso são seus empatadores, quando não seus inquisidores. Temos de estar à altura de nossos empatadores e de nossos carrascos, isso nos faz eternos agora. Vamos fazer muito bem fazendo o que temos de fazer para estas personagens, pessoas, empatadoras ou não e elas vão fazer muito bem para nós e para todos se cruzarem com nossa arte, se forem personagens de nossa dramaturgia.

Com estas entidades as mais empatadoras, inquisidoras ou indiferentes, mais a música, o povo cortado, sua cultura orgiástica de prazer copular, estaremos no caminho de criar uma nobreza humana, para uma dramaturgia social que torne possível um teatro importante para nós e pra todos.

“A ópera de carnaval brazyleira” é a oferenda do oficina Uzyna Uzona para o teatro do futuro agora. No nosso caminho, temos três musas:

Publicidade

Uma muito mal-humorada, Mário Covas. Ainda não sei como trabalhar essa personagem.

Outra que já refez a cara e os olhos, era o mais teatral de todos, hoje com um desenho ainda não tão nítido quanto já teve, um rosto em misteriosa mutação: o Maluf. Inspirou-me uma bela carta que acabei de lhe enviar.

O terceiro sempre de bom humor, mas com um subtexto que ninguém teve a esperança ainda de atravessar. Nem eu. Espero receber um estalo para chegar lá.

O primeiro, Covas, tem o Oficina tombado em sua administração. Precisa ser reteatralizado, coroar-se a cabeça de hera, sorrir-se, para que banque de corega com prazer, a manutenção que deve ao Oficina e seu belo equipamento, por convênio teatralmente assinado com o Estado. Outro dia chora va, porque é o único que quer pagar o que deve e ninguém o compreende. Ao Oficina ele deve. E nem imagina quanto nos prejudiciou neste ano de 95. Ditirambo, vem, me inspira!

O segundo tem o poder de decisão sobre a “cessão de uso” que Uzyna Uzona pede para a ágora, no minhocão, que ele mesmo construiu em frente do Oficina. Lá é o cais de Dionyzios com as bacantes, chegando em carro naval, para entrar: na “ária” de ar, de respiração urbanística da ágora que outro Paulo, o maravilhoso e elegante Paulo Mendes da Rocha, gênio como Glauber, projetou, a Broadway de carnaval do Bexiga, umbigo cultural de SP Sociedade Anônima.

O terceiro está destinado por vizinhança geográfica a dar passagem para o beco sem saída, abrir seu “portal da esperança” para nós, pequenos Davids que somos, uma pedrinha do seu imenso pé no Bexiga. O jornalista Alberto Dines já viu no seu livro sobre a nobreza culta da família Abravanel esta cena de dádiva acontecendo em horário nobre. O portal dá para o vazio ecológico enorme se abrindo para o estacionamento do Baú da Felicidade. Para lá poder passar e extar, um extádio de teatro dionisyaco, tipo o grego de Ribeirão Preto.

Com a entrada desses três personagens em cena, os obstáculos da ópera de carnaval passam a ser caminhos de passagem ecumenica para brotar a utopia: um oazys de futilidade púbica pública. Em forma de oito, cercado por um “centro de lazer” do Baú da Felicidade por todos os lados, menos por dois pontos, em que o rio de ouro da Rua Adoniran Barbosa até o Anhangabaú da Felicidade atravessa em calma paz o shopping do lazer.

Publicidade

Se Israel e Palestina se entenderam, se o muro caiu, tudo é possível. O tea tro do futuro ganha a presença num lugar urbano de contracenação de igual para igual em beleza do teatro da vida como: mercado, shopping, lazer útil, bom negócio (Prometeu) e futilidade, graça cheia de graça. Ócio.

E a dádiva da graça faz virar ouro as mercadorias que “não se consegue ainda nem se sabe comprar”. Traz riqueza para o teatro. Os mercadores têm muita coisa ainda de baixo custo para vender. Os estoques estão cheios de dramas, mas é hora de vender o que nun ca foi vendido (Rimbaud).

A ópera brazyleira do futuro quer seu topos, teatro carnaval plugado às belas e feias vias da cidade. Noel que- ria que seus sambas chegassem na veia do povo, queremos o mesmo para o teatro. Que fure salas de visitas para ligar-se no futuro imediato com as ruas, desenhando novos espaços elétricos do sangue da emoção circular da cidade. Desentupindo vias, praças, criando “oficinas de florestas para os deuses da chuva”. Desenfartando.

Da desdramaturgia urbanística de Paulo Mendes da Rocha para o descongestionamento do Bexiga, brota uma torre de produção para as personagens do fazer “ela”, a moeda real, se libertar da abstração especulativa e virar ouro Rheal: arte. A torre da Uzyna de Arte na ágora. Além do bar de vidraçaria de catedral da Lapa, pingas de todo o mundo.

O hotel “pelintra” para o Centro receber a elegância da periferia e de outras longitudes, que quer trabalhar nos coros de todas as classes e também do sem classe: os artistas lúmpens, cortados, desclassificados. É uma moradia que contribui um pouquinho pra saída do teatro da saia da ditadura da classe média.

O teatro do futuro mais que popular, comum, de todos, todas idades, sexos, gostos, crenças, classes, tem memória. Por isso uma outra torre totem sobe:a Torre Cacilda Becker para a memória do Teatro de São Paulo acender-se cybernética.

A encenação de três peças que escrevi traz as exclamações dos suspiros amáticos dessa atriz, para vitaminizar o presente com o culto da deusa Cacilda!!! Luis Fernando Ramos percebeu a dramaturgya utópica cheia de rubricas de diretor que está explícita na tragy comediorgya, a mesma que estou ra biscando, como um bomber, para o Estadão.

Todo. Oasys banhado em água de música. Villa-Lobos, Bidu Saião, avós da música brazyleira, gravados parecem xamar os músicos vivos, pra banhar o teatro e ser banhados por ele, teato, por Dionyzios. O futuro custa mais a chegar, porque há um enigma não resolvido na dualidade: teatro e música. A música tem poder maior de presentificação que os personagens políticos.

Para misturar tudo, tragédia, comédia e orgya, é preciso o dançarino. No final do festival de Campos do Jordão, foi lindo ver o Choro Número 10, de Villa-Lobos, com a sinfônica e um corpo da Vai-Vai, os cadernos pretos das partituras dos cantores do coro balançarem, erudito e popular ficaram quase orgyásticos, quase faltou um bailarino misturador. Faltou Nijinski.

A passagem dele pelo Brasil trouxe o orientalismo luxuso do carnaval, mas não ainda o dançarino brasyleiro, que faça o mundo dançar, o deus que dança como o povo dos trópicos, dança. O futuro xama o bailarino enterrado, que se há presente e misture todos. Saltando nos coros, dionyzios dos co- ros feito dança.

A tragicomediorgya precisa de coros teato, não de figurantes. Soberanas divindades corais. Tyasos coros como dos times de vôlei ou futebol. O corpo cênico religador do público todo como um circuito elétrico de ligadores no anel do tyato. Não um teatro de “atores” como se fala hoje no presente passado com a boca cheia, mais de protagonistas de coros, emergindo da comunhão de almas corpos do coro. Coros que criam o mar que torna possível o solo. Coros de corações.

O teatro é a arte da relação cardíaco-nervosa dos humanos com o cosmos, com os bichos, plantas. Os coros dançam, cantam, atuam, ficam a estar em transe, ligam corações, enterrados ou vivos no alô alô responde. O atletismo coral que liga uma Internet entre uma batida e outra de muitos pulsos. Parece dificil no presente, aparentemente. Bits de sim e não de vida mortevida.

Eternidade emotiva está aí para os coros acordarem. Só é tediosamente visível, por enquanto, a epifania do indivíduo, do mais competente, não a do mais co-petente, com mais apetite junto, mais primaverafischante.

Juntar coros apetitosos, gulosos, que queiram comer o mundo. Indivíduos centrados, que criem a Internet dos desejos ocultos, infernais, não ditos. “Achei coisas boas, de outras não gostei”.

Essa fala do drama não dá mais pra ser a da crítica que saia da cátedra, cabule a aula e caia na topografia do circuito. Uma crítica elétrica, que comente, irradie, a partir do grau de ligação e participação, do grau de pateada pra lá do aplauso civilizado. A isenção é coisa de uma parte do teatro, de Pentheu. A função da crítica não é mais a de domesticar, civilizar, julgar o público ou a peça, mas de excitar a imaginação diante da matéria bruta que o artista joga na arena. Se ele fica excitado, lógico.

Essa ópera do futuro presente pede um público que queira virar, e vimos em Ribeirão Preto. Que o público está a fim, como sempre, de virar, de trazer o carnaval fora do território cristão dos três dias, de brincar, de ir ao teatro como a um baile de carnaval, cheirando lança perfume, pra ver uma trio elétrico, Pacaembu, quadra de escola, festa funk ou quando sai na fissura da paquera. O público especializado, culto, que vai “assistitir”, é meio chato.

O futuro está presente, tem parte do seu topos no Oficina e quer. Quer um dia que é esse dia, para manifestar sua utropia, epifanizando a topografia toda do oasys da ágora. Dia dos mortos, todos os santos? Ou seu dia. O teatro do futuro está oculto no presente sem teatro, como a vida está às vezes estocada no silêncio tumular, por exemplo, do Teatro Oficina. A tragicomediorgya desse texto longo demais vem do desafio de trazer o futuro, passado presentes que sei que temos vivo em nosso corpo ator coral.

Nós do Tyaso do Oficina Uzyna Uzo- na, com tudo em cima, fazemos em quarenta dias aparecer o futuro, é preciso que se apresente o bacante que banque. O bancante. Franco Zampari bancou. Apostou numa festa, que faria um TBC melhor que os europeus no gênero. E ganhou. Se apostam no jogo, garantimos, o futuro vem, a nobreza da sociedade se revela. Precisamos de jogadores bicheiros com faro para saber que a riqueza da vida abunda no ines- perado e no capital de risco.

Não sei se as pontas de lança excessivas desse texto chegam ao que quero alcançar, se há letras de fogo de espírito santo nessas palavras que teclo no ócio do cio de entrar em cena. Como Tirezias, digo que o teatro do futuro, o de Dionyzios, “vai trazer para essa Grécia uma riqueza que eu não seria capaz de explicar”. Jogar dinheiro fora no túmido terreno do Oficina faz a florada de ouro da arte.

Dionyzios é o renascimento de um deus não somente do teatro, mas de um renascimento de tudo. Renascimento físico espiritual que está nas dobras da decadência absoluta da vida na abstração. O teatro de Dionyzios é óbvio, é o “bode dos bodes”, como sua sublimação, Jesus é “o rei dos reis”. Vivemos. Nos infernos, ouvimos os lamentos dos aposentados, a esperteza dos sa- queadores, a violência dos seqüestradores, o tempo desesperato dos desempregados, o abandono das crianças de rua. Somos como o Oswald no Rei da Vela já dedicava: “o enjeitado teatro brasileiro”. Sabemos o que é o valor e o desvalor. Toda a matéria cortada transmuta- mos em futuro presente.

O reino cultual da alquimia de Xamã processa, faz virar vinho, petróleo, sangue da terra o mesmo que acabou de chegar na primavera, no canteiro do Oficina. Ofertório:

Da eloqüência miserável desse miserável, no viço do fanatismo religioso, está oferecido um bori, uma mesa de comunhão do tamanho de um quarteirão. Maior que esse texto. Uma eucaristia, com hóstia de trigo, vinho, banana, champanhe, “cessão de uso” dos baixos do Minhocão, Paulo Mendes da Rocha, comungando com seu colega de sala de aula, Júlio Neves (Niemeyer de Maluf e do centro de lazer de Silvio Santos).

A secretária do abastecimento abrindo o Minhocão do lado, Paulo Maluf entrando de carro naval da Rua Adoniran Barbosa, “bacantes”, evangelho do nascimento de dionyzios segundo Eurípedes, dado em ópera de carnaval brazileira no trópico das cabras.

Comunhão na “precariedade radical”, como me aconselhou sempre Lina Bardi. Com o mestre de bateria Carlinhos Brown e o maestro de melodia cacíldica Zé Miguel, com orfeus, sátiros flautistas, baixos, muitos tambores fazendo tam tam. Transmissão direta. Ao vivo do acontecimento público, com a protagonização do público: olimpo de dionyzios.

Telões de vida de vídeo, da vídeo instalação cria- da por Tadeus Jungle, coros de bacantes nijinskas, sátiros, pé de bode e rabo, protagonistas emergidos do épico do Oficina, uvas amassadas, fogos de artificio em todo quarteirão, messiânicos fundamentalistas, católicos carismáticos comungando carisma mesmo, na graça do ecumenismo mulato de verdade, para saudar o deus de novas e renovadas crenças, pais e mães de santo, pelintras, homens passados, presentes e futuros, no meio de coqueiros, heras, cobras, cabras, reabrindo a roda viva do teatro no Bexiga.

Mais que nunca, só a antropofagia nos une para comer o futuro no bori deste deus, dia dos mortos ou dia 23 de novembro ou no dia que estrategicamente teremos querido que seja. O futuro está aí, bate as portas das ruas, dos céus e chega como um terremoto vindo do meio de dentro de terra e abre-se como uma cratera de um vul- cão numa fonte de fogo, escarrando fogo no Brazyl.

Se nem um décimo disso acontecer como está aqui xamado, a tragicomediorgya acontecendo na precariedade radical trará o invocado como vodu, imaginação alegórica em quantidade e qualidade visível no feito. Mais do que o que foi aqui procurado.

O futuro xamado se faz presente vindo do passado para o futuro sempre presente que o teatro quando é xamado xamanico traz.

Um dos fins das Bacantes é assim:

“E assim acaba o drama,E a dramaturgia

E assim começa

A Tragycomediorygia”

No sempre eterno particípio presente da vida presente, para dar mais vida ainda, há um lugar, um topos na topografia urbana, onde a arte se encontra com a vida publicamente, sem barrar ninguém nem nada, não é beuheuth, não tem Príncipe Ludwig, nem Wagner e está mais pra Nietzche transando com Wagner num terreiro de umbanda, mas vem da necessidade, da liberdade do prazer e do destino de realizar o seu pra que veio.

Um veio de ouro. O teatro do futuro é uma utopia que está onde exista um oasys de futilidade pública, aberto aos deuses do carvanal. Utopia alegoria que passa desfilando sempre do passado pro futuro e, por onde passa, semeia seu rio de ouro.

São Paulo deu café e no Bexiga deu e está dando de novo teat(r)o e é pri mavera. Alegria, tragycomedyorgia! Furo do futuro.

Evoé.

José Celso Martinez Corrêa é dramaturgo e diretor do grupo Oficina Uzyna Uzona

>> Leia mais sobre José Celso Martinez Correa

Zé Celso e o então secretário de Cultura de São, Fernando Moraes, no Teatro Oficina. Foto de março de 1989 Foto: Ariovaldo Vicentini/Estadão

+ ACERVO

> Veja o jornal do dia que você nasceu

> Capas históricas

> Todas as edições desde 1875

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.