'O conto não é um treino para o romance', diz Maria Valéria Rezende

Vencedora do Prêmio SP de Literatura e do Jabuti lança 'A Face Serena', novo livro de contos

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Por Bruna Meneguetti
4 min de leitura

A primeira vez que Maria Valéria Rezende publicou um livro de ficção foi de forma inusitada. Ela tinha 59 anos e nutria – ainda conservando aos 75 – o hábito de presentear seus amigos com histórias escritas por ela em zines. “Dei um desses para um amigo escritor, Frei Betto. Uns anos depois, chegou num editor e ele me telefonou, queria tudo o que eu tivesse”, recorda em entrevista ao Aliás. A partir do primeiro, vieram os outros. “É como se abrisse uma torneirinha na cabeça, você começa a ter prazer em fazer aquilo especialmente. E na medida que tem uma reação do leitor, também se sente estimulado”, explica. 

Maria Valéria Rezende durante mesa na Flip 2017 Foto: Walter Craveiro

A Face Serena, publicado este ano pela Penalux, veio de textos achados: há escritos mais recentes e outros antigos, retrabalhados e frutos dos encontros no Clube do Conto da Paraíba, que desafia os autores a produzir narrativas breves semanalmente. O conto Requadrilha, presente no livro, é um exemplo do uso dessas inspirações, nele Rezende amplia o universo do popular poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. 

O fio que interliga os textos é o das fases da vida. Em meio às crianças, Rezende demonstra os sentimentos ruins aflorando, como a inveja da superprotegida Danielle no conto homônimo em que vê Lila brincando e livre. Convidada para a festa da vizinha, Danielle rala de propósito o próprio joelho na parede apenas para ver “por trás dos vidros de lá, finalmente, a outra. De castigo”. 

Rezende captura bem as paixões arrebatadoras e frustradas da mocidade no conto Eclipse, um dos mais bem construídos do livro, que narra justamente a passagem da infância para a adolescência, quando o desejo aparece aos poucos no coração de Ana Clara durante brincadeiras de esconde-esconde. Há também mesclas de uma prosa poética, notáveis desde Educação, que explora as primeiras experiências sexuais: “Soube que tínhamos acabado de crescer numa noite de lua morta em que, naquela rua torta, tua porta não se abriu.” 

A ironia também é marca expressiva do livro, sendo o melhor exemplo o conto Tudo pela Beleza, em que Aurélia pensa estar sendo seguida por um admirador fotógrafo, quando, na verdade, é objeto de um concurso chamado “A beleza do feio”. Entre os assuntos abordados estão presentes a temática da fantasia, desigualdade social, escrita – como em O Crítico, sobre um homem que passa tanto tempo se preparando para ser um autor consagrado que se torna péssimo na escrita – e religião. Confira a entrevista de Rezende:

Quando começou, de fato, a escrever? Assim que aprendi a escrever, comecei a fazer meus livros. Fazia cinco exemplares e pedia para minha avó ou mãe costurar. Cresci entre escritores e distribuía ali, pela família. Vivi muito tempo em cidadezinha do interior onde não tinha livraria e nem biblioteca, quando não tinha mais o que ler eu sentava e escrevia. Também era uma maneira de tentar me pôr no lugar do outro durante meu processo de inserção em lugares onde eu fazia o trabalho de educação popular [como freira, ocupação que ainda exerce]. Então, para mim, escrever era uma coisa que um dia ia acontecer na vida de todos. Isso é uma grande vantagem porque eu nunca achei que escritor fosse nenhum ser especial. Todo mundo era, entendeu? 

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Como funciona seu processo de escrita? Em geral as coisas se “eminhocam” dentro da minha cabeça. Eu não sou nada introspectiva, observo o mundo à minha volta. Para escrever eu preciso encontrar quem conta, como conta e por que conta. Muitos jovens acham que o conto é um treino para o romance, e não é. O conto não é necessariamente mais fácil, pelo contrário, porque o conto não se pode perder a linha em nenhum momento. No romance, você pode desbaratinar de vez em quando. 

Antes de ficção, você escreveu livros de história, como uma pesquisa sobre a classe operária no Brasil. Qual a diferença entre escrever ficção e não ficção? Quando a gente escreve não ficção, tem que ter uma certeza, podemos dizer. Na ficção, se pode levantar qualquer hipótese e fazer refletir. Eu sempre escrevi nas linhas, mas as entrelinhas quem escreve é o leitor e assim eu fico sabendo tudo que está escondido. Então eu estou mais interessada nisso, percebe? De provocar as entrelinhas. Eu conto o que eu vejo e isso provoca que os outros contem o que eu não vejo.

Como missionária, você alfabetizou pessoas. Isso a influencia a buscar uma prosa mais límpida? A minha tentativa é que qualquer brasileiro alfabetizado possa ler e entender meus livros. A última coisa que quero é ser uma escritora hermética. Acho que hoje está acontecendo uma escrita da inutilidade da vida, do eu. Ultimamente há um monte de livros em que o protagonista tem uma doença rara. E eu me pergunto se isso não é uma metáfora do que o escritor gostaria que os outros achassem do que é ser escritor: “Literatura é minha maldição, eu tenho que escrever porque não consigo me livrar disso.”

Quais são os temas que acredita recorrentes, de algum modo, na sua escrita? O que sempre me interessa e o que preencheu a minha vida é, no fundo, a injustiça social. Eu sempre transitei entre meios muito diferentes. A coisa que mais me encanta é o talento do povo… Um desperdício de gente. Eu encontrei milhares de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de desenvolver seus talentos porque são pobres e acabou. Sabe, eu estou é preocupada com aqueles em quem ninguém repara. Por trás da minha escolha de fazer um romance é como se eu quisesse dizer assim: “Gente, abri uma cortina… Olhem para isso. Olhem para isso!” *Bruna Meneguetti é jornalista, autora de 'O Céu de Clarice' (Amazon) e coautora de 'Corações de Asfalto' (Patuá) 

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