Inédita no Brasil, comédia de Ernst Lubitsch satiriza costumes burgueses

Filmes do alemão são lançados em DVD pela Versátil Home Video

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Por Donny Correia
Atualização:

O agonizante mercado de home video tem caminhado a passos largos para se tornar um nicho fetichista voltado a colecionadores. Os DVDs logo se tornarão relíquias, e quanto mais raros e exclusivos seus conteúdos, mais chances de sobrevida no mercado. A Obras-Primas, distribuidora que pretende acompanhar de perto a nova tendência do segmento, acaba de proporcionar uma importante redescoberta em torno da – bastante apagada, hoje em dia – memória da obra do alemão Ernst Lubitsch (1892-1947). Trata-se de Als Ich Tot War (algo como “Quando eu estava morto”), de 1916, filme totalmente inédito no Brasil e o mais antigo trabalho de Lubistch a resistir ao tempo.

Cena de 'A Oitava Esposa de Barba Azul', de Ernst Lubitsch Foto: Obras-Primas do Cinema

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Rever Lubitsch é olhar para a pré-história do cinema alemão, que já mostrava grande forma muito antes do expressionismo. A Alemanha poderia muito bem ser considerada o verdadeiro berço do cinema, já que os irmãos Skladanowsky apresentaram aos berlinenses seu Bioscópio apenas alguns meses antes do Cinematographo Lumière vir à lume, na França. O espectador alemão era dado a consumir fartamente as produções americanas, italianas e francesas. Mas, até 1910 o país tinha pouca produção própria. Coube a um produtor teatral de renome, Max Reinhardt, alinhar algumas ideias de alguns realizadores engajados para consolidar alguma coisa mais próxima de uma indústria de filmes. 

Na aurora da Grande Guerra, os roteiros concentravam-se em trazer para a tela o heroísmo germânico e pequenas dramatizações dos triunfos obtidos nas batalhas de movimento e expansão. Já por volta de 1915, quando ficava cada vez mais claro que as hostilidades se prolongariam além do previsto e a guerra de movimento tornou-se estática, os produtores de cinema precisaram encontrar fórmulas que amainassem os ânimos tensos da população. Começou, aí, uma enxurrada de melodramas e comédias de costume. É nesse momento que surge Ernst Lubitsch, jovem oriundo do grupo de Reinhardt, que dividia suas inclinações artísticas com um emprego de meio período na loja do pai, um comerciante judeu, que legou ao filho um refinado senso de humor.

Em Als Ich Tot War, o espectador se depara com uma trama farsesca muito recorrente no universo de Lubitsch. Resumidamente, nos deparamos com um casal que vive certa estabilidade financeira e material, numa confortável residência, com alguns criados. O problema é que a mãe da moça mora junto com os dois, e faz da vida de seu genro – vivido pelo próprio Lubitsch – um inferno, já que se considera dona da vida da filha, dos empregados da casa e até mesmo a do pobre rapaz que quer apenas um pouco de paz para ir ao clube à noite jogar xadrez com os amigos. Após uma discussão com a megera, Lubitsch é expulso de casa e sua esposa conforma-se, convencida pela mãe, em dizer que o marido faleceu. Para regressar ao lar sem ser notado e antes que sua sogra encontre outro pretendente para a filha, Lubitsch se disfarça de candidato a novo empregado da casa e passa a sabotar o plano matrimonial da velha até fazê-la concordar em ir embora e deixar o casal em paz. O filme, composto de três breves atos, atinge o ápice da comicidade nas cenas em que o pobre rapaz, no limite de seu ódio, despe-se de escrúpulos e passa a chantagear a sogra, que, não sabendo que o empregado é quem é, passa a flertar com ele às escondidas.

Não se trata, apenas, de uma comédia pastelão. É, antes de tudo, uma sutil crítica à moral burguesa e às aparências, fragilizadas por um estado de exceção em tempos de incertezas. Além disso, a inventividade imagética de Lubitsch denota um autor à frente da estética cinematográfica daqueles dias. Atenção à cena em que a frívola esposa se penteia em frente ao espelho. Um duplo reflexo nos revela um fundo de sensualidade feminina misturado à metáfora principal do filme: o que vemos não é aquilo que realmente é, ou pode ser visto de maneiras distintas, como o personagem central, que também precisa esconder a verdadeira identidade para solucionar seu conflito.

A seleta da Obras-Primas mistura, sem aparente critério, as fases alemã e americana do diretor. Assim, temos, ainda, Madame Dubarry (1919), Ladrão de Alcova (1932), Sócios no Amor (1933) e A Oitava Esposa do Barba Azul (1938). Todos problematizam com sarcasmo temas espinhosos, desde a vida da amante do rei Luís XV, passando por um “proto-poliamor”, até à famigerada legitimidade circunstancial do roubo e da traição. Assim, fica clara a unidade desta coleção: um olhar mais abrangente e analítico sobre as motivações dos personagens no universo do diretor, em que os menores e mais mesquinhos desejos movem suas ações.

Em 1939, Ernst Lubitsch atingiria aquele que é considerado seu ponto mais alto, Ninotchka, ao unir escorregadelas morais e crítica ferrenha à política global às vésperas daquela que seria a maior prova do fracasso humano. É o que podemos chamar de um niilismo jocoso, que faz troça da inevitável falibilidade nas relações e que nos faz rir de nossas próprias vergonhas, por mais íntimas e absurdas que sejam. *Donny Correia é doutor em estética e história da arte pela USP. Publicou, entre outros, 'Cinematographos de Guilherme de Almeida, Antologia da Crítica Cinematográfica' (2016) 

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