RIO - O Brasil está bem inserido quando o assunto é tecnologia para a transição energética, sobretudo quando ligada ao setor de petróleo. O que falta é política pública e regulação, diz Telmo Ghiorzi, o próximo presidente executivo da Associação Brasileira das Empresas de Bens e Serviços de Petróleo (Abespetro), que reúne 50 fabricantes e fornecedoras do setor. A partir de 15 de janeiro, a entidade passa a funcionar sob nova estrutura de governança, com oito conselheiros dotados de mandatos de 4 anos, além de presidente-executivo e vice-presidente sem mandatos definidos.
Em entrevista ao Estadão/Broadcast, além da transição energética, Ghiorzi critica o aumento da exigência de conteúdo local no setor, definido pelo governo no apagar das luzes de 2023, e comenta a relação da cadeia com a Petrobras. A seguir, os principais trechos da conversa:
Qual é o efeito da transição energética sobre a cadeia produtiva do petróleo?
A transição acontece no mundo inteiro e as empresas da cadeia do petróleo estudam alternativas. Estão adotando várias estratégias na direção da reinjeção de dióxido de carbono em reservatórios esvaziados, instalação dos aerogeradores de eólica offshore e mineração do solo marítimo para a própria transição energética. Há, também, a descarbonização das operações tradicionais. Tudo isso será feito pelos próprios fornecedores do setor e já está acontecendo. Ainda não sabemos qual será a velocidade disso nem quais serão os negócios mais proeminentes no futuro. Mas as empresas já apostam em tecnologias novas.
Quais são essas tecnologias?
São várias, e estamos bem inseridos. Para se ter ideia, no famoso projeto norueguês de captura de carbono e reinjeção em reservatórios depletados, o Northern Lights, os equipamentos usados foram fabricados no Brasil pela Aker Solutions (hoje parte da OneSubsea, joint venture com SLB e Subsea7). A árvore de natal para a reinjeção do carbono foi fabricada em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Outro caso que vale citar é o da Misc, que estuda um FCSU, uma plataforma que vai ficar no meio do mar voltada à reinjeção de carbono. Uma estrutura vai fazer a captura no onshore, liquefazer o gás e mandar para a plataforma reinjetar no campo depletado. Então as empresas brasileiras e seus pares em outros países têm o domínio sobre essas tecnologias. Aproveitar isso é muito mais uma questão de política pública e regulação. Temos grandes reservatórios que ficarão depletados um dia. Vai chegar a hora de usá-los como grandes absorvedores do carbono emitido em todo o mundo e não só no Brasil.
E para eólica offshore?
Aí não há grande segredo, não há ruptura de barreira científica. Há uma imagem de complexidade porque ainda é uma novidade. Mas para quem coloca um FPSO (plataformas flutuantes) produzindo a 3 mil metros de profundidade, uma eólica offshore é mais simples. Tem aerogeradores fixos, do tipo que flutuam ou que ficam amarrados. Esses são mais baratos e ficam mais perto da costa. Mas há, também, os flutuantes, instalados mais distantes do litoral. Novamente, é mais uma questão de regulação por governo, Marinha e órgãos reguladores.
Você mencionou terras raras. Ainda é assunto pouco falado no setor...
Sim. No fundo do mar existem minerais úteis à transição, necessários a baterias e equipamentos elétricos, por exemplo. Há empresas que estão adaptando sondas de perfuração. Uma delas é a Oil States, que está avançando em um riser (tubo) adaptado para levar areia de baixo para cima a fim de que, na plataforma, essa areia seja tratada, purificada e extraído o minério de interesse. Estamos falando de uma tecnologia do setor adaptada para nova aplicação.
Com qual cenário de emissões zero trabalha a Abespetro?
Em 2050, as emissões líquidas serão zero. Haverá produção de petróleo, mas bem menor, a ponto dos mecanismos de reinjeção de dióxido de carbono, de CCUS ( captura, utilização e armazenamento de carbono, na sigla em inglês), serem suficientes para compensar a emissão gerada pelo petróleo em 2050. O cenário mais agressivo é de uma produção na casa de 25% da atual. E ainda assim as pessoas vão continuar tendo acesso a essa energia. A fartura material é inegociável.
No fim de 2023 o CNPE elevou as exigências de conteúdo local na exploração e produção, de 18% e 25%, respectivamente, para 30%. Como avalia?
O efeito imediato é incerteza, insegurança jurídica e redução do apetite de petroleiras em investir em outras oportunidades no Brasil. A mudança está desalinhada com outras iniciativas do governo. O MDIC e outros órgãos de Estado e governo têm medidas que miram a industrialização, baseadas em desenvolvimento tecnológico e exportação de bens e serviços industriais. A mudança anunciada pelo CNPE não está articulada com outros instrumentos da política industrial, não define prazos e contrapartidas de desempenho das empresas beneficiadas, assim como não define metas de exportação. Protecionismo sem prazo nem contrapartida é pura e simplesmente reserva de mercado.
A Abespetro é contra a lógica do conteúdo local?
Não, de forma alguma. Nossa razão de ser é aumentar organicamente o conteúdo local. Mas a gente separa com muita clareza o que é exigência e o que é a efetiva atividade local da indústria. Não existe causalidade. Se aumentar a exigência, aumenta-se temporariamente o conteúdo local em projetos em andamento. Mas, no próximo projeto, a empresa vai rever investimentos. Todo mundo deseja que se aumente o conteúdo local, mas não é aumentando a exigência que se consegue isso. O que precisa é de um arcabouço de neoindustrialização que, na área de petróleo, passa por melhoramentos no Repetro, na regra de PDI, na lei das estatais. A Petrobras pode usar melhor seu poder de compra para induzir conteúdo local. O BNDES pode ter condições ainda mais favoráveis para a indústria local.
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O sr. mencionou o poder de compra da Petrobras. Como vai o diálogo do setor com a estatal?
Isso melhorou dramaticamente. O nível de interlocução que temos agora, após esse primeiro ano de gestão (Jean Paul) Prates, é incomparavelmente melhor do que tivemos nos quatro anos do governo anterior. Então não tínhamos nenhuma porta para bater, para reclamar. Há muitos desafios nessa relação, mas o canal de diálogo está muito aberto. Não vamos superar todas as divergências, mas existe diálogo.
A Petrobras tem interesse declarado em abrir novas fronteiras exploratórias, na Margem Equatorial ou na recém-leiloada bacia de Pelotas, no Sul. Como isso impacta a cadeia?
Seja em Pelotas ou na Foz do Amazonas, a cidade que mais se beneficia de imediato é Macaé, no norte do Rio, onde está o grosso da indústria hoje. Há atividade industrial em Taubaté, Santos, Curitiba e também no Estado do Espírito Santo, mas a concentração em Macaé ainda é muito maior. Mas, no futuro, tanto no Amapá quanto no Rio Grande do Sul, a tendência é que novas fábricas e unidades de apoio logístico sejam abertas, com geração de emprego e arrecadação local relevantes.
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Como vê o imbróglio ambiental que trava a exploração da Margem Equatorial?
O cenário parece cada vez mais crítico. Tivemos uma grande crise em 2014, na esteira de uma queda abrupta do preço do petróleo e da Lava-Jato e, antes disso, um hiato de cinco anos nos leilões de área, o que descontinuou a atividade. A sensação agora, com relação à Margem Equatorial, é de crise contratada. Se não começar a explorar logo lá, será que as descobertas da bacia de Pelotas serão suficientes para manter a indústria rodando? Torcemos por isso, mas o ideal seria explorar a margem, onde há maior potencial.
Descomissionamento de plataformas vem ganhando tração graças à Petrobras. É oportunidade para o setor...
Isso de fato começou, mas ainda está no início. As atividades por ora estão concentradas em um grande estaleiro no Sul (Rio Grande), que atua em conjunto com a Gerdau. Esses projetos iniciais vão servir de enorme aprendizado técnico e econômico. O Brasil tem tudo para se tornar um país muito atuante em descomissionamento (plataformas e equipamentos tirados de operação e destinados à reciclagem e descarte). Há demanda e recursos previstos para isso. A ANP prevê mais de R$ 55 bilhões em gastos com descomissionamento nos próximos anos.
Como avalia os esforços para manter essa cadeia no País?
Essa é uma questão importante. A Petrobras e outras empresas têm os recursos previstos para fazer o descomissionamento. As empresas observam o benefício de seus acionistas, o que significa contratar com o menor custo possível. O que não for gasto volta para o caixa, e isso, no frigir dos ovos, significa mais dividendo. E se o mais barato for fazer o descomissionamento no exterior? Temos de arrumar a casa, desenvolver as condições para manter esse negócio no País. Isso ainda não está feito. Temos um pedaço da regulação, mas ainda há questões tributárias e tecnológicas. Os estaleiros nacionais certamente não estão no nível dos pares que fazem esse trabalho há mais tempo em outros países. Nessa circunstância, a Petrobras, se encarada como braço do Estado para desenvolvimento da indústria local, talvez faça algum sacrifício nesse sentido, mas, para todo o setor, é difícil.
As empresas da Abespetro planejam atuar em descomissionamento no Brasil?
Sim. Vamos sempre preferir que o descomissionamento seja feito no Brasil. Muitas empresas nossas são afretadoras de navios-plataformas, ou seja, detêm o ativo e o alugam para as petroleiras. Então o descomissionamento cabe às nossas empresas. Não foram elas que acumularam o dinheiro para descomissionar os campos, isso cabe à petroleira, mas o ativo ao fim e ao cabo é da fretadora. SBM, Modec, Saipen, Misc, Ocyan, Altera, cedo ou tarde, vão atuar em descomissionamentos, interagindo com as petroleiras no processo. O mesmo vale para as nossas associadas capazes de prestar os serviços em si, como desmantelamento e recolhimento de cabos. Então é do nosso interesse que a atividade fique no País.