Uma história para contar


Analistas falam das perspectivas de recuperação da economia, embalada pelo avanço das reformas estruturais, mas isso não faz sentido

Por Luís Eduardo Assis

Tempos atrás, um certo diretor de política monetária dirigia seu carro para o Banco Central (BC) pela manhã quando percebeu que o pneu havia furado. Parou e, com sua escassa habilidade manual, realizou a troca. Feita a manobra de alta complexidade, percebeu que sua camisa estava suja de graxa. Teve de voltar ao apartamento funcional para se trocar. Com isso, o leilão que o BC fazia todas as manhãs para regular a taxa Selic na abertura dos mercados atrasou. No dia seguinte, um jornal especializado analisava o que chamou de nova estratégia do Banco Central. Com ajuda de analistas, o artigo não só explicava a mudança, como justificava a sua necessidade, elogiando-a. Um dia depois, o pneu não furou, os leilões voltaram para a abertura do mercado e não se falou mais nisso. O mercado precisa, sempre, de uma história para contar o que aconteceu. Nada pode ser por acaso.

A paixão não é mais do que o ato de a gente ficar no ar antes de mergulhar, já disse Caetano. O mercado está apaixonado. Desde 23 de março, quando atingiu a mínima do ano, o Ibovespa já se valorizou mais de 80%. O que tanto se comemora? Analistas falam das perspectivas de recuperação da economia, embalada pelo avanço das reformas estruturais no rastro do acordo do governo com o Centrão. Faz sentido? Nenhum.

O crescimento é lento. O mercado prevê uma queda do PIB de -4,4% neste ano. Isso significa que o crescimento do quarto trimestre em relação ao terceiro será de apenas 0,4%. Para 2021, a estimativa é de crescimento de 3,5%. Como o PIB é calculado pela média do ano e a média de 2020 foi muito baixa, isso significa que o carry-over de 2021 será muito alto, da ordem de 2,7%.

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Ou seja, mesmo que o produto fique estagnado, em 2021 a variação anual do PIB será de 2,7%. Assim, uma previsão de 3,5% sinaliza um aumento de apenas 0,8% no ano-calendário de 2021. Por razões sazonais, a atividade do primeiro trimestre é a mais fraca. Com o fim do auxílio emergencial, a queda do PIB no primeiro trimestre será ainda mais forte, da ordem de 4%, sem considerar a sazonalidade. O desemprego, que está em nível recorde, continuará a subir, ao passo que o IPCA poderá superar os 6% anuais em maio. A LCA Consultores prevê que a massa de rendimentos reais cairá 3,1% em 2021, ante uma elevação de 5,5% neste ano, graças ao auxílio emergencial.

As juras de amor à austeridade também estão agastadas. O Orçamento aprovado prevê um déficit primário de R$ 247 bilhões, mesmo com o teto de despesas, o que é quase três vezes maior que o déficit de 2019. O pacto do governo com o Centrão, historicamente comprometido com a incontinência fiscal, reduz ainda mais as chances de aprovação de reformas que, lembremos, são impopulares. Não haverá uma rápida recuperação da economia em 2021.

Mais fácil acreditar que o otimismo da Bolsa de Valores reflete apenas uma alocação maior para países emergentes, no rastro da vacinação nos países ricos e da promessa de um mundo mais normal com a eleição de Joe Biden.

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O mercado acionário brasileiro é pequeno. O volume negociado aqui é pouco mais de 1% do mercado global. Qualquer realocação do balde internacional de liquidez entorna o nosso dedal e é suficiente para deixar nossos analistas apaixonados, explicando, [ITALIC]a posteriori[/ITALIC], as razões falsamente fundamentadas de um otimismo tão prosaico quanto passageiro. Nascem-nos as mãos, por um desígnio da Natureza. Vêm, então, os economistas a tricotar luvas que nelas se amoldem. O problema é acreditar que as luvas explicam as mãos. Um dia destes, encontrarão razões para proclamar o fim do mundo, mais uma vez. O mercado gosta de vagar a esmo, ciclotímico, em busca de uma história para contar.

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

Tempos atrás, um certo diretor de política monetária dirigia seu carro para o Banco Central (BC) pela manhã quando percebeu que o pneu havia furado. Parou e, com sua escassa habilidade manual, realizou a troca. Feita a manobra de alta complexidade, percebeu que sua camisa estava suja de graxa. Teve de voltar ao apartamento funcional para se trocar. Com isso, o leilão que o BC fazia todas as manhãs para regular a taxa Selic na abertura dos mercados atrasou. No dia seguinte, um jornal especializado analisava o que chamou de nova estratégia do Banco Central. Com ajuda de analistas, o artigo não só explicava a mudança, como justificava a sua necessidade, elogiando-a. Um dia depois, o pneu não furou, os leilões voltaram para a abertura do mercado e não se falou mais nisso. O mercado precisa, sempre, de uma história para contar o que aconteceu. Nada pode ser por acaso.

A paixão não é mais do que o ato de a gente ficar no ar antes de mergulhar, já disse Caetano. O mercado está apaixonado. Desde 23 de março, quando atingiu a mínima do ano, o Ibovespa já se valorizou mais de 80%. O que tanto se comemora? Analistas falam das perspectivas de recuperação da economia, embalada pelo avanço das reformas estruturais no rastro do acordo do governo com o Centrão. Faz sentido? Nenhum.

O crescimento é lento. O mercado prevê uma queda do PIB de -4,4% neste ano. Isso significa que o crescimento do quarto trimestre em relação ao terceiro será de apenas 0,4%. Para 2021, a estimativa é de crescimento de 3,5%. Como o PIB é calculado pela média do ano e a média de 2020 foi muito baixa, isso significa que o carry-over de 2021 será muito alto, da ordem de 2,7%.

Ou seja, mesmo que o produto fique estagnado, em 2021 a variação anual do PIB será de 2,7%. Assim, uma previsão de 3,5% sinaliza um aumento de apenas 0,8% no ano-calendário de 2021. Por razões sazonais, a atividade do primeiro trimestre é a mais fraca. Com o fim do auxílio emergencial, a queda do PIB no primeiro trimestre será ainda mais forte, da ordem de 4%, sem considerar a sazonalidade. O desemprego, que está em nível recorde, continuará a subir, ao passo que o IPCA poderá superar os 6% anuais em maio. A LCA Consultores prevê que a massa de rendimentos reais cairá 3,1% em 2021, ante uma elevação de 5,5% neste ano, graças ao auxílio emergencial.

As juras de amor à austeridade também estão agastadas. O Orçamento aprovado prevê um déficit primário de R$ 247 bilhões, mesmo com o teto de despesas, o que é quase três vezes maior que o déficit de 2019. O pacto do governo com o Centrão, historicamente comprometido com a incontinência fiscal, reduz ainda mais as chances de aprovação de reformas que, lembremos, são impopulares. Não haverá uma rápida recuperação da economia em 2021.

Mais fácil acreditar que o otimismo da Bolsa de Valores reflete apenas uma alocação maior para países emergentes, no rastro da vacinação nos países ricos e da promessa de um mundo mais normal com a eleição de Joe Biden.

O mercado acionário brasileiro é pequeno. O volume negociado aqui é pouco mais de 1% do mercado global. Qualquer realocação do balde internacional de liquidez entorna o nosso dedal e é suficiente para deixar nossos analistas apaixonados, explicando, [ITALIC]a posteriori[/ITALIC], as razões falsamente fundamentadas de um otimismo tão prosaico quanto passageiro. Nascem-nos as mãos, por um desígnio da Natureza. Vêm, então, os economistas a tricotar luvas que nelas se amoldem. O problema é acreditar que as luvas explicam as mãos. Um dia destes, encontrarão razões para proclamar o fim do mundo, mais uma vez. O mercado gosta de vagar a esmo, ciclotímico, em busca de uma história para contar.

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

Tempos atrás, um certo diretor de política monetária dirigia seu carro para o Banco Central (BC) pela manhã quando percebeu que o pneu havia furado. Parou e, com sua escassa habilidade manual, realizou a troca. Feita a manobra de alta complexidade, percebeu que sua camisa estava suja de graxa. Teve de voltar ao apartamento funcional para se trocar. Com isso, o leilão que o BC fazia todas as manhãs para regular a taxa Selic na abertura dos mercados atrasou. No dia seguinte, um jornal especializado analisava o que chamou de nova estratégia do Banco Central. Com ajuda de analistas, o artigo não só explicava a mudança, como justificava a sua necessidade, elogiando-a. Um dia depois, o pneu não furou, os leilões voltaram para a abertura do mercado e não se falou mais nisso. O mercado precisa, sempre, de uma história para contar o que aconteceu. Nada pode ser por acaso.

A paixão não é mais do que o ato de a gente ficar no ar antes de mergulhar, já disse Caetano. O mercado está apaixonado. Desde 23 de março, quando atingiu a mínima do ano, o Ibovespa já se valorizou mais de 80%. O que tanto se comemora? Analistas falam das perspectivas de recuperação da economia, embalada pelo avanço das reformas estruturais no rastro do acordo do governo com o Centrão. Faz sentido? Nenhum.

O crescimento é lento. O mercado prevê uma queda do PIB de -4,4% neste ano. Isso significa que o crescimento do quarto trimestre em relação ao terceiro será de apenas 0,4%. Para 2021, a estimativa é de crescimento de 3,5%. Como o PIB é calculado pela média do ano e a média de 2020 foi muito baixa, isso significa que o carry-over de 2021 será muito alto, da ordem de 2,7%.

Ou seja, mesmo que o produto fique estagnado, em 2021 a variação anual do PIB será de 2,7%. Assim, uma previsão de 3,5% sinaliza um aumento de apenas 0,8% no ano-calendário de 2021. Por razões sazonais, a atividade do primeiro trimestre é a mais fraca. Com o fim do auxílio emergencial, a queda do PIB no primeiro trimestre será ainda mais forte, da ordem de 4%, sem considerar a sazonalidade. O desemprego, que está em nível recorde, continuará a subir, ao passo que o IPCA poderá superar os 6% anuais em maio. A LCA Consultores prevê que a massa de rendimentos reais cairá 3,1% em 2021, ante uma elevação de 5,5% neste ano, graças ao auxílio emergencial.

As juras de amor à austeridade também estão agastadas. O Orçamento aprovado prevê um déficit primário de R$ 247 bilhões, mesmo com o teto de despesas, o que é quase três vezes maior que o déficit de 2019. O pacto do governo com o Centrão, historicamente comprometido com a incontinência fiscal, reduz ainda mais as chances de aprovação de reformas que, lembremos, são impopulares. Não haverá uma rápida recuperação da economia em 2021.

Mais fácil acreditar que o otimismo da Bolsa de Valores reflete apenas uma alocação maior para países emergentes, no rastro da vacinação nos países ricos e da promessa de um mundo mais normal com a eleição de Joe Biden.

O mercado acionário brasileiro é pequeno. O volume negociado aqui é pouco mais de 1% do mercado global. Qualquer realocação do balde internacional de liquidez entorna o nosso dedal e é suficiente para deixar nossos analistas apaixonados, explicando, [ITALIC]a posteriori[/ITALIC], as razões falsamente fundamentadas de um otimismo tão prosaico quanto passageiro. Nascem-nos as mãos, por um desígnio da Natureza. Vêm, então, os economistas a tricotar luvas que nelas se amoldem. O problema é acreditar que as luvas explicam as mãos. Um dia destes, encontrarão razões para proclamar o fim do mundo, mais uma vez. O mercado gosta de vagar a esmo, ciclotímico, em busca de uma história para contar.

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

Tempos atrás, um certo diretor de política monetária dirigia seu carro para o Banco Central (BC) pela manhã quando percebeu que o pneu havia furado. Parou e, com sua escassa habilidade manual, realizou a troca. Feita a manobra de alta complexidade, percebeu que sua camisa estava suja de graxa. Teve de voltar ao apartamento funcional para se trocar. Com isso, o leilão que o BC fazia todas as manhãs para regular a taxa Selic na abertura dos mercados atrasou. No dia seguinte, um jornal especializado analisava o que chamou de nova estratégia do Banco Central. Com ajuda de analistas, o artigo não só explicava a mudança, como justificava a sua necessidade, elogiando-a. Um dia depois, o pneu não furou, os leilões voltaram para a abertura do mercado e não se falou mais nisso. O mercado precisa, sempre, de uma história para contar o que aconteceu. Nada pode ser por acaso.

A paixão não é mais do que o ato de a gente ficar no ar antes de mergulhar, já disse Caetano. O mercado está apaixonado. Desde 23 de março, quando atingiu a mínima do ano, o Ibovespa já se valorizou mais de 80%. O que tanto se comemora? Analistas falam das perspectivas de recuperação da economia, embalada pelo avanço das reformas estruturais no rastro do acordo do governo com o Centrão. Faz sentido? Nenhum.

O crescimento é lento. O mercado prevê uma queda do PIB de -4,4% neste ano. Isso significa que o crescimento do quarto trimestre em relação ao terceiro será de apenas 0,4%. Para 2021, a estimativa é de crescimento de 3,5%. Como o PIB é calculado pela média do ano e a média de 2020 foi muito baixa, isso significa que o carry-over de 2021 será muito alto, da ordem de 2,7%.

Ou seja, mesmo que o produto fique estagnado, em 2021 a variação anual do PIB será de 2,7%. Assim, uma previsão de 3,5% sinaliza um aumento de apenas 0,8% no ano-calendário de 2021. Por razões sazonais, a atividade do primeiro trimestre é a mais fraca. Com o fim do auxílio emergencial, a queda do PIB no primeiro trimestre será ainda mais forte, da ordem de 4%, sem considerar a sazonalidade. O desemprego, que está em nível recorde, continuará a subir, ao passo que o IPCA poderá superar os 6% anuais em maio. A LCA Consultores prevê que a massa de rendimentos reais cairá 3,1% em 2021, ante uma elevação de 5,5% neste ano, graças ao auxílio emergencial.

As juras de amor à austeridade também estão agastadas. O Orçamento aprovado prevê um déficit primário de R$ 247 bilhões, mesmo com o teto de despesas, o que é quase três vezes maior que o déficit de 2019. O pacto do governo com o Centrão, historicamente comprometido com a incontinência fiscal, reduz ainda mais as chances de aprovação de reformas que, lembremos, são impopulares. Não haverá uma rápida recuperação da economia em 2021.

Mais fácil acreditar que o otimismo da Bolsa de Valores reflete apenas uma alocação maior para países emergentes, no rastro da vacinação nos países ricos e da promessa de um mundo mais normal com a eleição de Joe Biden.

O mercado acionário brasileiro é pequeno. O volume negociado aqui é pouco mais de 1% do mercado global. Qualquer realocação do balde internacional de liquidez entorna o nosso dedal e é suficiente para deixar nossos analistas apaixonados, explicando, [ITALIC]a posteriori[/ITALIC], as razões falsamente fundamentadas de um otimismo tão prosaico quanto passageiro. Nascem-nos as mãos, por um desígnio da Natureza. Vêm, então, os economistas a tricotar luvas que nelas se amoldem. O problema é acreditar que as luvas explicam as mãos. Um dia destes, encontrarão razões para proclamar o fim do mundo, mais uma vez. O mercado gosta de vagar a esmo, ciclotímico, em busca de uma história para contar.

*ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E DA FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM 

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