A guerra acabou?


Cedo ou tarde, a conta cairá no colo de Putin; quando o conflito terminar, pode ser o fim de seu regime

Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

A julgar pelas informações da imprensa, as conversas de paz entre Ucrânia e Rússia tiveram um progresso considerável nos últimos dias. A Rússia informou à Ucrânia que ela pode ser membro da União Europeia, desde que se comprometa a não pertencer à Otan. A Ucrânia afirmou que se submeteria a esta condição desde que três ou quatro países independentes possam lhe assegurar sua proteção frente a interferência russa em seu território. Na verdade, o entusiasmo parece pouco convincente.

Em primeiro lugar, para ser membro da UE, um país deve ser absolutamente livre, algo que não ocorreria com a Ucrânia, já que ela só seria membro da futura UE sempre e quando se visse privada de pertencer à Otan, aliança de defesa do Ocidente. E a Rússia prosseguiria não somente com a guerra, mas também com a intervenção no seio da Ucrânia, “protegendo” as republiquetas que ela mesma criou, para submeter o país a uma espécie de vassalagem sistemática nos anos futuros.

Civis ucranianos são retirados de Mariupol, cidade sitiada por forças russas 
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Repressão

Fora da Rússia é possível falar de uma guerra que já causou muitas mortes. Quantas? Não sabemos. Na Rússia não se pode pronunciar a palavra “guerra” e, se um cidadão distraído a pronuncia, vai para a cadeia. Também foi proibido se manifestar contra a guerra. Quem o fez já está atrás das grades.

O que os russos estão fazendo, então, na Ucrânia? Lutam contra os nazistas, segundo Vladimir Putin, e as bombas que os russos lançam contra regiões residenciais, hospitais e escolas são, pelo visto, puramente imaginárias. Mas a realidade é que, passado mais de um mês da invasão, as tropas russas ainda não conseguiram tomar Kiev nem nenhuma cidade importante da Ucrânia, enquanto os russos perdem muitos homens e rumores que permeiam os correspondentes de guerra afirmam que os números oficiais apresentados por Moscou não têm nada a ver com a realidade.

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A realidade é que a Rússia, por sua vez, até onde é possível saber, está contratando mercenários chechenos para que apoiem as forças invasoras, que foram detidas pelos soldados ucranianos. Estes, diga-se de passagem, têm a solidariedade de quase todo o mundo.

O único jornal que se opunha à guerra em Moscou teve de deixar de circular pelo número de advertências que recebia das autoridades. Na verdade, as coisas não parecem ter progredido, ainda que o presidente dos EUA tenha tido que engolir as palavras que pronunciou quando disse que “um homem como Putin não pode estar à frente de um governo na Rússia”.

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Os EUA se apressaram em negar que pretendam decidir pelo povo russo os ocupantes do Kremlin. Por outra parte, a delegação ucraniana em Istambul advertiu seus membros a se absterem de comer comidas locais, para não correr risco de envenenamento, como o que teria sido submetido Roman Abramovich, um dos milionários russos e amigo ou ex-amigo de Putin.

Tudo parece indicar que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia foi precipitada e levou toda a Europa Ocidental a cerrar fileiras, mostrando uma unificação não testemunhada havia muitos anos e fazendo a grande maioria dos países do mundo solidarizar-se com os ucranianos e condenar a ação russa, a qual muitos jornalistas e estadistas veem como uma tentativa de reconstruir o antigo império soviético.

Uma reconstrução que, pelo menos por agora, parece improvável, em razão da alergia ao sistema comunista que revelam os antigos países-satélite, salvo aqueles que têm ditaduras segundo o modelo soviético – Belarus, por exemplo – aos quais a maioria deste bloco ideológico guarda simpatias.

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Por outro lado, é difícil que Putin salve sua pele e se mantenha no poder depois do fracasso de sua ofensiva militar contra a Ucrânia. Ele disse que lutaria contra o grupelho de “nazista” que havia usurpado o Estado, e a realidade é que Volodmir Zelenski, que está à frente do governo ucraniano, e a totalidade de seus ministros não parecem representar coisa semelhante, apenas conduzem um povo valente e decidido, que recuperou a liberdade, a lutar por ela e também pela integridade territorial de seu país.

É isso o que desperta a imensa solidariedade com a qual os ucranianos contam e, consequentemente, o desprestígio de Putin e dos que o seguem na Rússia, onde, nas últimas semanas, temos visto – enfim – casos notórios de críticas ao poder, apesar do preço que os dissidentes da política de Putin se atrevem a pagar ser tão elevado que lembre as brutalidades da época de Stalin.

Conspiração

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É possível que, depois dessa pancadaria, Putin saia ileso, mas não será assim por muito tempo. Cedo ou tarde, nos engenhos entre os discretos corredores do Kremlin, sua defenestração será conspirada, pois o ocorrido fez a Rússia perder muitos aliados no mundo, países que haviam sido laboriosamente seduzidos e, da noite para o dia, acabam de mostrar solidariedade total com a Ucrânia, que consideram, obviamente, vítima do apetite imperialista de Putin.

Este chegou a falar das capacidades das bombas atômicas e de hidrogênio que possui, mas o alarde que houve a respeito no mundo inteiro foi exagerado. A Rússia não se atreverá a usar seus arsenais atômicos, pois sabe bem que, se o fizer, imediatamente será vítima de uma réplica que poderia asfixiar e destruir esses arsenais, ao mesmo tempo infligindo um sério castigo à maioria de sua população.

Defesa

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Essa chantagem, por outra parte, não faz mais que enfraquecer a causa que o povo russo parece defender em relação à invasão à Ucrânia. Ao mesmo tempo, os dissidentes mais notórios – já encarcerados – acabam de receber novas sentenças que, ao menos em teoria, os manteriam na cadeia indefinidamente.

Mas tudo dependerá de Putin seguir no poder ou ser afastado discretamente, ao modo soviético. Tem sido observado, conforme noticia um artigo de Pilar Bonet, no jornal El País, que os assessores de Putin que se atrevem a propor um apaziguamento são defenestrados. Mas isso só faz acumular as responsabilidades que pesam sobre ele depois de levar seu país a lançar uma invasão à Ucrânia que, sob qualquer ângulo, resulta num fiasco para a Rússia.

Isso tem um preço que será inevitavelmente cobrado, mesmo que seja depois. E poderá significar para a Rússia sair de uma vez por todas dessa atmosfera sinistra que, desde a ascensão de Putin, impera no país, que depois de uma caótica liberdade, retornou com Putin ao período soviético, até o maiúsculo equívoco que foi a invasão à Ucrânia.

Solução

Mas daí também poderia vir a solução para a Rússia. Putin cometeu um grave erro, pelo qual seus inimigos o farão pagar cedo ou tarde. Tomara para a Rússia que seja mais cedo que tarde, e o país volte a desfrutar da liberdade (algo caótica) que tinha nos dias de Yeltsin, que, apesar da bebedeira, era um democrata.

Mas foi lamentável que ele tenha escolhido um sucessor como Putin, que, educado pela KGB, agora trata de reconstruir o império soviético. Mas esses delírios de grandeza o fizeram cometer o maior erro de sua vida. Algo por que ele terá de responder ao ver-se afastado do poder que usou tão mal e, depois do erro cometido, pelo qual será castigado, inaugure para a Rússia um período no qual o país recupere a liberdade e seja capaz, por fim, de coexistir com outros países pacificamente, praticando essa democracia pela qual clamam tantos de seus compatriotas. A guerra não acabará tão logo. Mas seu fim pode ser também o fim da Rússia de Vladimir Putin. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EM TODAS AS LÍNGUAS RESERVADAS PARA EDICIONES EL PAÍS S.L. 2022

A julgar pelas informações da imprensa, as conversas de paz entre Ucrânia e Rússia tiveram um progresso considerável nos últimos dias. A Rússia informou à Ucrânia que ela pode ser membro da União Europeia, desde que se comprometa a não pertencer à Otan. A Ucrânia afirmou que se submeteria a esta condição desde que três ou quatro países independentes possam lhe assegurar sua proteção frente a interferência russa em seu território. Na verdade, o entusiasmo parece pouco convincente.

Em primeiro lugar, para ser membro da UE, um país deve ser absolutamente livre, algo que não ocorreria com a Ucrânia, já que ela só seria membro da futura UE sempre e quando se visse privada de pertencer à Otan, aliança de defesa do Ocidente. E a Rússia prosseguiria não somente com a guerra, mas também com a intervenção no seio da Ucrânia, “protegendo” as republiquetas que ela mesma criou, para submeter o país a uma espécie de vassalagem sistemática nos anos futuros.

Civis ucranianos são retirados de Mariupol, cidade sitiada por forças russas 

Repressão

Fora da Rússia é possível falar de uma guerra que já causou muitas mortes. Quantas? Não sabemos. Na Rússia não se pode pronunciar a palavra “guerra” e, se um cidadão distraído a pronuncia, vai para a cadeia. Também foi proibido se manifestar contra a guerra. Quem o fez já está atrás das grades.

O que os russos estão fazendo, então, na Ucrânia? Lutam contra os nazistas, segundo Vladimir Putin, e as bombas que os russos lançam contra regiões residenciais, hospitais e escolas são, pelo visto, puramente imaginárias. Mas a realidade é que, passado mais de um mês da invasão, as tropas russas ainda não conseguiram tomar Kiev nem nenhuma cidade importante da Ucrânia, enquanto os russos perdem muitos homens e rumores que permeiam os correspondentes de guerra afirmam que os números oficiais apresentados por Moscou não têm nada a ver com a realidade.

A realidade é que a Rússia, por sua vez, até onde é possível saber, está contratando mercenários chechenos para que apoiem as forças invasoras, que foram detidas pelos soldados ucranianos. Estes, diga-se de passagem, têm a solidariedade de quase todo o mundo.

O único jornal que se opunha à guerra em Moscou teve de deixar de circular pelo número de advertências que recebia das autoridades. Na verdade, as coisas não parecem ter progredido, ainda que o presidente dos EUA tenha tido que engolir as palavras que pronunciou quando disse que “um homem como Putin não pode estar à frente de um governo na Rússia”.

Os EUA se apressaram em negar que pretendam decidir pelo povo russo os ocupantes do Kremlin. Por outra parte, a delegação ucraniana em Istambul advertiu seus membros a se absterem de comer comidas locais, para não correr risco de envenenamento, como o que teria sido submetido Roman Abramovich, um dos milionários russos e amigo ou ex-amigo de Putin.

Tudo parece indicar que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia foi precipitada e levou toda a Europa Ocidental a cerrar fileiras, mostrando uma unificação não testemunhada havia muitos anos e fazendo a grande maioria dos países do mundo solidarizar-se com os ucranianos e condenar a ação russa, a qual muitos jornalistas e estadistas veem como uma tentativa de reconstruir o antigo império soviético.

Uma reconstrução que, pelo menos por agora, parece improvável, em razão da alergia ao sistema comunista que revelam os antigos países-satélite, salvo aqueles que têm ditaduras segundo o modelo soviético – Belarus, por exemplo – aos quais a maioria deste bloco ideológico guarda simpatias.

Por outro lado, é difícil que Putin salve sua pele e se mantenha no poder depois do fracasso de sua ofensiva militar contra a Ucrânia. Ele disse que lutaria contra o grupelho de “nazista” que havia usurpado o Estado, e a realidade é que Volodmir Zelenski, que está à frente do governo ucraniano, e a totalidade de seus ministros não parecem representar coisa semelhante, apenas conduzem um povo valente e decidido, que recuperou a liberdade, a lutar por ela e também pela integridade territorial de seu país.

É isso o que desperta a imensa solidariedade com a qual os ucranianos contam e, consequentemente, o desprestígio de Putin e dos que o seguem na Rússia, onde, nas últimas semanas, temos visto – enfim – casos notórios de críticas ao poder, apesar do preço que os dissidentes da política de Putin se atrevem a pagar ser tão elevado que lembre as brutalidades da época de Stalin.

Conspiração

É possível que, depois dessa pancadaria, Putin saia ileso, mas não será assim por muito tempo. Cedo ou tarde, nos engenhos entre os discretos corredores do Kremlin, sua defenestração será conspirada, pois o ocorrido fez a Rússia perder muitos aliados no mundo, países que haviam sido laboriosamente seduzidos e, da noite para o dia, acabam de mostrar solidariedade total com a Ucrânia, que consideram, obviamente, vítima do apetite imperialista de Putin.

Este chegou a falar das capacidades das bombas atômicas e de hidrogênio que possui, mas o alarde que houve a respeito no mundo inteiro foi exagerado. A Rússia não se atreverá a usar seus arsenais atômicos, pois sabe bem que, se o fizer, imediatamente será vítima de uma réplica que poderia asfixiar e destruir esses arsenais, ao mesmo tempo infligindo um sério castigo à maioria de sua população.

Defesa

Essa chantagem, por outra parte, não faz mais que enfraquecer a causa que o povo russo parece defender em relação à invasão à Ucrânia. Ao mesmo tempo, os dissidentes mais notórios – já encarcerados – acabam de receber novas sentenças que, ao menos em teoria, os manteriam na cadeia indefinidamente.

Mas tudo dependerá de Putin seguir no poder ou ser afastado discretamente, ao modo soviético. Tem sido observado, conforme noticia um artigo de Pilar Bonet, no jornal El País, que os assessores de Putin que se atrevem a propor um apaziguamento são defenestrados. Mas isso só faz acumular as responsabilidades que pesam sobre ele depois de levar seu país a lançar uma invasão à Ucrânia que, sob qualquer ângulo, resulta num fiasco para a Rússia.

Isso tem um preço que será inevitavelmente cobrado, mesmo que seja depois. E poderá significar para a Rússia sair de uma vez por todas dessa atmosfera sinistra que, desde a ascensão de Putin, impera no país, que depois de uma caótica liberdade, retornou com Putin ao período soviético, até o maiúsculo equívoco que foi a invasão à Ucrânia.

Solução

Mas daí também poderia vir a solução para a Rússia. Putin cometeu um grave erro, pelo qual seus inimigos o farão pagar cedo ou tarde. Tomara para a Rússia que seja mais cedo que tarde, e o país volte a desfrutar da liberdade (algo caótica) que tinha nos dias de Yeltsin, que, apesar da bebedeira, era um democrata.

Mas foi lamentável que ele tenha escolhido um sucessor como Putin, que, educado pela KGB, agora trata de reconstruir o império soviético. Mas esses delírios de grandeza o fizeram cometer o maior erro de sua vida. Algo por que ele terá de responder ao ver-se afastado do poder que usou tão mal e, depois do erro cometido, pelo qual será castigado, inaugure para a Rússia um período no qual o país recupere a liberdade e seja capaz, por fim, de coexistir com outros países pacificamente, praticando essa democracia pela qual clamam tantos de seus compatriotas. A guerra não acabará tão logo. Mas seu fim pode ser também o fim da Rússia de Vladimir Putin. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EM TODAS AS LÍNGUAS RESERVADAS PARA EDICIONES EL PAÍS S.L. 2022

A julgar pelas informações da imprensa, as conversas de paz entre Ucrânia e Rússia tiveram um progresso considerável nos últimos dias. A Rússia informou à Ucrânia que ela pode ser membro da União Europeia, desde que se comprometa a não pertencer à Otan. A Ucrânia afirmou que se submeteria a esta condição desde que três ou quatro países independentes possam lhe assegurar sua proteção frente a interferência russa em seu território. Na verdade, o entusiasmo parece pouco convincente.

Em primeiro lugar, para ser membro da UE, um país deve ser absolutamente livre, algo que não ocorreria com a Ucrânia, já que ela só seria membro da futura UE sempre e quando se visse privada de pertencer à Otan, aliança de defesa do Ocidente. E a Rússia prosseguiria não somente com a guerra, mas também com a intervenção no seio da Ucrânia, “protegendo” as republiquetas que ela mesma criou, para submeter o país a uma espécie de vassalagem sistemática nos anos futuros.

Civis ucranianos são retirados de Mariupol, cidade sitiada por forças russas 

Repressão

Fora da Rússia é possível falar de uma guerra que já causou muitas mortes. Quantas? Não sabemos. Na Rússia não se pode pronunciar a palavra “guerra” e, se um cidadão distraído a pronuncia, vai para a cadeia. Também foi proibido se manifestar contra a guerra. Quem o fez já está atrás das grades.

O que os russos estão fazendo, então, na Ucrânia? Lutam contra os nazistas, segundo Vladimir Putin, e as bombas que os russos lançam contra regiões residenciais, hospitais e escolas são, pelo visto, puramente imaginárias. Mas a realidade é que, passado mais de um mês da invasão, as tropas russas ainda não conseguiram tomar Kiev nem nenhuma cidade importante da Ucrânia, enquanto os russos perdem muitos homens e rumores que permeiam os correspondentes de guerra afirmam que os números oficiais apresentados por Moscou não têm nada a ver com a realidade.

A realidade é que a Rússia, por sua vez, até onde é possível saber, está contratando mercenários chechenos para que apoiem as forças invasoras, que foram detidas pelos soldados ucranianos. Estes, diga-se de passagem, têm a solidariedade de quase todo o mundo.

O único jornal que se opunha à guerra em Moscou teve de deixar de circular pelo número de advertências que recebia das autoridades. Na verdade, as coisas não parecem ter progredido, ainda que o presidente dos EUA tenha tido que engolir as palavras que pronunciou quando disse que “um homem como Putin não pode estar à frente de um governo na Rússia”.

Os EUA se apressaram em negar que pretendam decidir pelo povo russo os ocupantes do Kremlin. Por outra parte, a delegação ucraniana em Istambul advertiu seus membros a se absterem de comer comidas locais, para não correr risco de envenenamento, como o que teria sido submetido Roman Abramovich, um dos milionários russos e amigo ou ex-amigo de Putin.

Tudo parece indicar que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia foi precipitada e levou toda a Europa Ocidental a cerrar fileiras, mostrando uma unificação não testemunhada havia muitos anos e fazendo a grande maioria dos países do mundo solidarizar-se com os ucranianos e condenar a ação russa, a qual muitos jornalistas e estadistas veem como uma tentativa de reconstruir o antigo império soviético.

Uma reconstrução que, pelo menos por agora, parece improvável, em razão da alergia ao sistema comunista que revelam os antigos países-satélite, salvo aqueles que têm ditaduras segundo o modelo soviético – Belarus, por exemplo – aos quais a maioria deste bloco ideológico guarda simpatias.

Por outro lado, é difícil que Putin salve sua pele e se mantenha no poder depois do fracasso de sua ofensiva militar contra a Ucrânia. Ele disse que lutaria contra o grupelho de “nazista” que havia usurpado o Estado, e a realidade é que Volodmir Zelenski, que está à frente do governo ucraniano, e a totalidade de seus ministros não parecem representar coisa semelhante, apenas conduzem um povo valente e decidido, que recuperou a liberdade, a lutar por ela e também pela integridade territorial de seu país.

É isso o que desperta a imensa solidariedade com a qual os ucranianos contam e, consequentemente, o desprestígio de Putin e dos que o seguem na Rússia, onde, nas últimas semanas, temos visto – enfim – casos notórios de críticas ao poder, apesar do preço que os dissidentes da política de Putin se atrevem a pagar ser tão elevado que lembre as brutalidades da época de Stalin.

Conspiração

É possível que, depois dessa pancadaria, Putin saia ileso, mas não será assim por muito tempo. Cedo ou tarde, nos engenhos entre os discretos corredores do Kremlin, sua defenestração será conspirada, pois o ocorrido fez a Rússia perder muitos aliados no mundo, países que haviam sido laboriosamente seduzidos e, da noite para o dia, acabam de mostrar solidariedade total com a Ucrânia, que consideram, obviamente, vítima do apetite imperialista de Putin.

Este chegou a falar das capacidades das bombas atômicas e de hidrogênio que possui, mas o alarde que houve a respeito no mundo inteiro foi exagerado. A Rússia não se atreverá a usar seus arsenais atômicos, pois sabe bem que, se o fizer, imediatamente será vítima de uma réplica que poderia asfixiar e destruir esses arsenais, ao mesmo tempo infligindo um sério castigo à maioria de sua população.

Defesa

Essa chantagem, por outra parte, não faz mais que enfraquecer a causa que o povo russo parece defender em relação à invasão à Ucrânia. Ao mesmo tempo, os dissidentes mais notórios – já encarcerados – acabam de receber novas sentenças que, ao menos em teoria, os manteriam na cadeia indefinidamente.

Mas tudo dependerá de Putin seguir no poder ou ser afastado discretamente, ao modo soviético. Tem sido observado, conforme noticia um artigo de Pilar Bonet, no jornal El País, que os assessores de Putin que se atrevem a propor um apaziguamento são defenestrados. Mas isso só faz acumular as responsabilidades que pesam sobre ele depois de levar seu país a lançar uma invasão à Ucrânia que, sob qualquer ângulo, resulta num fiasco para a Rússia.

Isso tem um preço que será inevitavelmente cobrado, mesmo que seja depois. E poderá significar para a Rússia sair de uma vez por todas dessa atmosfera sinistra que, desde a ascensão de Putin, impera no país, que depois de uma caótica liberdade, retornou com Putin ao período soviético, até o maiúsculo equívoco que foi a invasão à Ucrânia.

Solução

Mas daí também poderia vir a solução para a Rússia. Putin cometeu um grave erro, pelo qual seus inimigos o farão pagar cedo ou tarde. Tomara para a Rússia que seja mais cedo que tarde, e o país volte a desfrutar da liberdade (algo caótica) que tinha nos dias de Yeltsin, que, apesar da bebedeira, era um democrata.

Mas foi lamentável que ele tenha escolhido um sucessor como Putin, que, educado pela KGB, agora trata de reconstruir o império soviético. Mas esses delírios de grandeza o fizeram cometer o maior erro de sua vida. Algo por que ele terá de responder ao ver-se afastado do poder que usou tão mal e, depois do erro cometido, pelo qual será castigado, inaugure para a Rússia um período no qual o país recupere a liberdade e seja capaz, por fim, de coexistir com outros países pacificamente, praticando essa democracia pela qual clamam tantos de seus compatriotas. A guerra não acabará tão logo. Mas seu fim pode ser também o fim da Rússia de Vladimir Putin. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA © DIREITOS DE PUBLICAÇÃO EM TODAS AS LÍNGUAS RESERVADAS PARA EDICIONES EL PAÍS S.L. 2022

A julgar pelas informações da imprensa, as conversas de paz entre Ucrânia e Rússia tiveram um progresso considerável nos últimos dias. A Rússia informou à Ucrânia que ela pode ser membro da União Europeia, desde que se comprometa a não pertencer à Otan. A Ucrânia afirmou que se submeteria a esta condição desde que três ou quatro países independentes possam lhe assegurar sua proteção frente a interferência russa em seu território. Na verdade, o entusiasmo parece pouco convincente.

Em primeiro lugar, para ser membro da UE, um país deve ser absolutamente livre, algo que não ocorreria com a Ucrânia, já que ela só seria membro da futura UE sempre e quando se visse privada de pertencer à Otan, aliança de defesa do Ocidente. E a Rússia prosseguiria não somente com a guerra, mas também com a intervenção no seio da Ucrânia, “protegendo” as republiquetas que ela mesma criou, para submeter o país a uma espécie de vassalagem sistemática nos anos futuros.

Civis ucranianos são retirados de Mariupol, cidade sitiada por forças russas 

Repressão

Fora da Rússia é possível falar de uma guerra que já causou muitas mortes. Quantas? Não sabemos. Na Rússia não se pode pronunciar a palavra “guerra” e, se um cidadão distraído a pronuncia, vai para a cadeia. Também foi proibido se manifestar contra a guerra. Quem o fez já está atrás das grades.

O que os russos estão fazendo, então, na Ucrânia? Lutam contra os nazistas, segundo Vladimir Putin, e as bombas que os russos lançam contra regiões residenciais, hospitais e escolas são, pelo visto, puramente imaginárias. Mas a realidade é que, passado mais de um mês da invasão, as tropas russas ainda não conseguiram tomar Kiev nem nenhuma cidade importante da Ucrânia, enquanto os russos perdem muitos homens e rumores que permeiam os correspondentes de guerra afirmam que os números oficiais apresentados por Moscou não têm nada a ver com a realidade.

A realidade é que a Rússia, por sua vez, até onde é possível saber, está contratando mercenários chechenos para que apoiem as forças invasoras, que foram detidas pelos soldados ucranianos. Estes, diga-se de passagem, têm a solidariedade de quase todo o mundo.

O único jornal que se opunha à guerra em Moscou teve de deixar de circular pelo número de advertências que recebia das autoridades. Na verdade, as coisas não parecem ter progredido, ainda que o presidente dos EUA tenha tido que engolir as palavras que pronunciou quando disse que “um homem como Putin não pode estar à frente de um governo na Rússia”.

Os EUA se apressaram em negar que pretendam decidir pelo povo russo os ocupantes do Kremlin. Por outra parte, a delegação ucraniana em Istambul advertiu seus membros a se absterem de comer comidas locais, para não correr risco de envenenamento, como o que teria sido submetido Roman Abramovich, um dos milionários russos e amigo ou ex-amigo de Putin.

Tudo parece indicar que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia foi precipitada e levou toda a Europa Ocidental a cerrar fileiras, mostrando uma unificação não testemunhada havia muitos anos e fazendo a grande maioria dos países do mundo solidarizar-se com os ucranianos e condenar a ação russa, a qual muitos jornalistas e estadistas veem como uma tentativa de reconstruir o antigo império soviético.

Uma reconstrução que, pelo menos por agora, parece improvável, em razão da alergia ao sistema comunista que revelam os antigos países-satélite, salvo aqueles que têm ditaduras segundo o modelo soviético – Belarus, por exemplo – aos quais a maioria deste bloco ideológico guarda simpatias.

Por outro lado, é difícil que Putin salve sua pele e se mantenha no poder depois do fracasso de sua ofensiva militar contra a Ucrânia. Ele disse que lutaria contra o grupelho de “nazista” que havia usurpado o Estado, e a realidade é que Volodmir Zelenski, que está à frente do governo ucraniano, e a totalidade de seus ministros não parecem representar coisa semelhante, apenas conduzem um povo valente e decidido, que recuperou a liberdade, a lutar por ela e também pela integridade territorial de seu país.

É isso o que desperta a imensa solidariedade com a qual os ucranianos contam e, consequentemente, o desprestígio de Putin e dos que o seguem na Rússia, onde, nas últimas semanas, temos visto – enfim – casos notórios de críticas ao poder, apesar do preço que os dissidentes da política de Putin se atrevem a pagar ser tão elevado que lembre as brutalidades da época de Stalin.

Conspiração

É possível que, depois dessa pancadaria, Putin saia ileso, mas não será assim por muito tempo. Cedo ou tarde, nos engenhos entre os discretos corredores do Kremlin, sua defenestração será conspirada, pois o ocorrido fez a Rússia perder muitos aliados no mundo, países que haviam sido laboriosamente seduzidos e, da noite para o dia, acabam de mostrar solidariedade total com a Ucrânia, que consideram, obviamente, vítima do apetite imperialista de Putin.

Este chegou a falar das capacidades das bombas atômicas e de hidrogênio que possui, mas o alarde que houve a respeito no mundo inteiro foi exagerado. A Rússia não se atreverá a usar seus arsenais atômicos, pois sabe bem que, se o fizer, imediatamente será vítima de uma réplica que poderia asfixiar e destruir esses arsenais, ao mesmo tempo infligindo um sério castigo à maioria de sua população.

Defesa

Essa chantagem, por outra parte, não faz mais que enfraquecer a causa que o povo russo parece defender em relação à invasão à Ucrânia. Ao mesmo tempo, os dissidentes mais notórios – já encarcerados – acabam de receber novas sentenças que, ao menos em teoria, os manteriam na cadeia indefinidamente.

Mas tudo dependerá de Putin seguir no poder ou ser afastado discretamente, ao modo soviético. Tem sido observado, conforme noticia um artigo de Pilar Bonet, no jornal El País, que os assessores de Putin que se atrevem a propor um apaziguamento são defenestrados. Mas isso só faz acumular as responsabilidades que pesam sobre ele depois de levar seu país a lançar uma invasão à Ucrânia que, sob qualquer ângulo, resulta num fiasco para a Rússia.

Isso tem um preço que será inevitavelmente cobrado, mesmo que seja depois. E poderá significar para a Rússia sair de uma vez por todas dessa atmosfera sinistra que, desde a ascensão de Putin, impera no país, que depois de uma caótica liberdade, retornou com Putin ao período soviético, até o maiúsculo equívoco que foi a invasão à Ucrânia.

Solução

Mas daí também poderia vir a solução para a Rússia. Putin cometeu um grave erro, pelo qual seus inimigos o farão pagar cedo ou tarde. Tomara para a Rússia que seja mais cedo que tarde, e o país volte a desfrutar da liberdade (algo caótica) que tinha nos dias de Yeltsin, que, apesar da bebedeira, era um democrata.

Mas foi lamentável que ele tenha escolhido um sucessor como Putin, que, educado pela KGB, agora trata de reconstruir o império soviético. Mas esses delírios de grandeza o fizeram cometer o maior erro de sua vida. Algo por que ele terá de responder ao ver-se afastado do poder que usou tão mal e, depois do erro cometido, pelo qual será castigado, inaugure para a Rússia um período no qual o país recupere a liberdade e seja capaz, por fim, de coexistir com outros países pacificamente, praticando essa democracia pela qual clamam tantos de seus compatriotas. A guerra não acabará tão logo. Mas seu fim pode ser também o fim da Rússia de Vladimir Putin. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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