Muitas foram as tentativas de se frear o ímpeto punitivo iniciado com a Lava Jato até 2018, mas todas elas resultaram em nada. Funcionou como barreira de contenção às investidas, perpetradas sobretudo pelos políticos, mas com ecos também no STF, o apoio de que a operação gozava na opinião pública.
De tal forma anabolizada, a Lava Jato deixou de ser vista como uma força-tarefa temporária para virar uma espécie de instituição autônoma e teve papel importante na eleição de Jair Bolsonaro e outros expoentes da autodenominada “nova política”. Esse fenômeno viu seu ápice na nomeação de Sérgio Moro para o Ministério da Justiça.
Passados os primeiros meses de governo, no entanto, a maré virou. O caso Vaza Jato mostrou abusos cometidos por procuradores da Lava Jato e abalou o monolito de credibilidade da operação. Paralelamente, as revelações de irregularidades cometidas no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio tiraram do clã presidencial o discurso fácil do moralismo.
Foi essa conjunção astral que foi percebida pelos setores da política e do Judiciário incomodados com o protagonismo da Lava Jato e que sempre apontaram abusos por parte do Ministério Público e outros órgãos de controle, como a Receita e o Coaf, para finalmente ter êxito em iniciativas para lhes cortar as asas.
O ponto de inflexão no jogo foi a decisão de Dias Toffoli de suspender o inquérito contra Flávio Bolsonaro a partir de relatórios do Coaf – cujo efeito se estendeu a todas as investigações similares. Bolsonaro desconhece qualquer liturgia institucional ou republicana, mas entende perfeitamente o léxico do favor aos seus “garotos”. A canetada de Toffoli fez com que o presidente respirasse aliviado diante do maior pesadelo do bolsonarismo: ver derrubada sua imagem moralista.
A partir dessa aliança tácita e improvável entre o presidente, Toffoli e seu grupo no STF, cujo grande mentor intelectual é Gilmar Mendes e que tem um poderoso instrumento de ação em pleno vigor, que é o superinquérito comandado por Alexandre de Moraes, o Congresso também viu espaço para avançar e aprovar a antes improvável Lei de Abuso de Autoridade.
O papai Bolsonaro vai vetar a proposta na íntegra, como exige sua base, ao mesmo tempo bolsonarista e lavajatista? Não. Vai vetar todos os pontos pedidos por Moro, hoje refém da mudança da maré? Pouco provável.
Afinal, o mesmo Bolsonaro que tem a caneta para vetar precisa do Senado, onde nasceu a proposta de abuso de autoridade, para aprovar a indicação do outro filho, Eduardo, para a embaixada do Brasil nos Estados Unidos, missão que ele mesmo reconhece como difícil. E ele quer tudo, menos ver seus filhos sofrerem. Para evitar isso, podem ser sacrificados todos os órgãos do Estado no altar do patrimonialismo.
Os ataques subsequentes e combinados à Receita Federal, à Polícia Federal e ao Coaf têm a mesma causa e se revestem da mesma obsessão: Flávio e seu entorno com suspeita de ligações com milícias, rachadinhas e outras práticas, e um suposto cerco a parentes lá no Vale do Ribeira.
Na investida contra a Receita, algo que nem o PT ousou fazer quando era alvo de investigações no mensalão e no petrolão, o presidente joga de novo afinado com o STF, que no inquérito-polvo paralisou investigação aberta contra vários agentes públicos e seus familiares e afastou sumariamente dois auditores.
A cereja do bolo do cerco às instituições será a escolha do procurador-geral da República. Subitamente e para perplexidade do Ministério Público, o favoritismo recai sobre Antonio Carlos Simões Martins Soares, ilustre desconhecido cujas credenciais são ser do Rio e ter o aval de… Flávio Bolsonaro! Como diria o funk – carioca, claro – “tá dominado, tá tudo dominado”.