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Meus amigos do Afeganistão: o livreiro de Cabul, o intérprete e o refugiado

Estratégia dos EUA de impor à força o seu modelo de democracia não foi eficiente

Por André Fran
Atualização:

“No momento em que as tropas americanas deixarem o Afeganistão, o Taleban retornará ao poder.” A frase profética foi proferida para mim por Shah Muhammad Rais, o lendário protagonista do clássico “O Livreiro de Cabul”, da jornalista norueguesa Asne Seierstad. O livro conta a história de Rais, dono de uma humilde livraria localizada no centro da capital, que enfrentou a ocupação soviética, as ameaças do Taleban, prisões, tortura, sofreu ameaças, viu sua livraria ser invadida e mais de 10 mil exemplares de seu acervo queimados na calçada por soldados do grupo fundamentalista. Mas jamais arrefeceu em sua luta inglória para levar informação e cultura ao povo afegão. O conheci em 2010, durante viagem pelo Afeganistão gravando uma reportagem especial, e o papo de mais de duas horas que tivemos em sua livraria histórica foi uma aula sobre a dura realidade de seu país. “A segunda fase de uma guerra é a mais difícil: criar e manter a paz”, ele se referia à dificuldade dos EUA em estabelecer uma relação construtiva com o povo afegão e suas lideranças. O modelo americano de impor à força o seu modelo de democracia não era suficiente ou eficiente. “Depois eles falham e a culpa será de seu desconhecimento da realidade afegã.” Pouco mais de dez anos depois: dito e feito.

Mas essa não era uma opinião exclusiva do livreiro mais famoso de Cabul. Em sua mais recente biografia, que analisei em uma de minhas colunas para o Estadão, o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, confessa que o maior fracasso de suas administrações talvez tenha sido a “guerra sem fim” que se tornou o Afeganistão. Segundo ele e demais analistas da diplomacia americana, a janela para realizar a reconstrução do país após a invasão havia sido perdida. Seu sucessor, o republicano Donald Trump, concordava: uma de suas grandes promessas de campanha era “trazer nossos rapazes de volta”, em referência às tropas americanas em missões no exterior. Foi Trump quem começou a costurar o acordo, que incluía negociações com o Taleban, para tirar os EUA dessa enrascada. Joe Biden viu cair em seu colo o fiasco que manchará para sempre sua extensa carreira política. Afinal, foi ele quem, em última instância, confiou nos acordos selados com o Taleban, afirmou em cadeia nacional que o exército do Afeganistão, equipado e treinado pelos Estados Unidos, rechaçaria qualquer ameaça Taleban e que acabou testemunhando atônito os funcionários de sua embaixada tentando deixar o país em desespero enquanto o Taleban tomava o poder em questão de horas. Pior, sobrou para Biden o discurso infeliz em que, ao avaliar os 20 anos de ocupação disse: “Nunca foi nossa intenção reconstruir uma nação”.

Extremistas do Talibã tomam o poder no Afeganistão; milhares de famíliastentam sair do país Foto: Olivier Douliery/AFP

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Era a confirmação do que me disse o livreiro dez anos atrás. Algo tão previsível para quem conhecia a realidade da guerra como desesperador para quem vivia aquela situação. Foi tentando entender essa realidade que conheci em Cabul um dos projetos sociais mais interessantes que já vi. O Skateistan é uma ONG criada pelo skatista australiano Oliver Percovitch. Percebendo o interesse das crianças locais que o viam deslizar pelas ruas da capital sobre quatro rodinhas, Oliver decidiu usar a sua paixão pelo esporte radical como ferramenta para mudar a realidade dura daqueles pequenos afegãos. Ele criou uma pista de skate de fazer inveja às melhores do mundo. Mas, quem quisesse andar ali precisava se matricular nas aulas de História, Geografia e Cidadania que eram ministradas no local. Uma maneira de construir relações e transformar realidades de maneira não-impositiva e se aliando à cultura local. Uma lição sobre como aproveitar a tal da janela de oportunidade para a construção da paz, ignorada pelo governo americano. Foi lá que conheci Edris Tawab, um jovem afegão que atuava como tradutor para os funcionários do projeto. E foi ele quem confirmou a impressão que parecia lugar comum entre os afegãos: a realidade de violência só vai mudar com uma mudança de postura da ocupação. “Mais soldados pode significar mais guerras, mas talvez seja necessário para evitar um mal maior. A questão é como interromper esse ciclo de violência.” Há mais de dez anos, era difícil entender essa realidade que, infelizmente, faz todo sentido agora. “Entre confrontos com URSS, Taleban, EUA… um jovem afegão não sabe o que é viver em paz. A realidade é a guerra, como criar a paz é que deveria ser o desafio”, concluiu Edris.

Por força do trabalho (e do destino) acabei conhecendo outro jovem afegão que atuou como intérprete de tropas americanas. Esbarrei com Abdul Rahimi, de apenas 18 anos, quando cobria a crise de refugiados na Europa, em 2015. Ele era um entre milhares de homens, mulheres e crianças que chegavam às praias gregas em botes improvisados lutando por sua sobrevivência. Quando perguntei a ele, ainda molhado e exausto de seu desembarque caótico na ilha de Lesbos, qual era seu destino na Europa, ele me disse: “Não sei! Qualquer lugar onde haja paz.” Rahimi deixou o Afeganistão porque seu irmão, que o auxiliava no trabalho com soldados americanos, foi morto por guerreiros talebans. Rahimi conseguiu chegar à Alemanha e só agora, anos depois, conseguiu finalizar seu processo oficial de imigração. Uma jornada de muita luta e sofrimento. Mas um caso de sucesso entre centenas de outros.

Nesse momento, outros tantos intérpretes e cidadãos afegãos que trabalharam ou tiveram contatos com oficiais dos EUA nesses últimos anos tentam fugir desesperados do país após a retomada do poder pelo Taleban. E o que dizer das mulheres, principais vítimas do grupo extremista que volta agora a comandar o país? Se a versão oficial prometia um governo mais “moderado”, os relatos mais recentes mostram que os abusos e a violência prometem imperar como antes. Destino imprevisível? Nem um pouco. Bastava ouvir as vozes daqueles que serão afetados mais uma vez por esse trágico ciclo imposto ao Afeganistão.

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*É DIRETOR, APRESENTADOR DE TV, JORNALISTA E TEM MAIS DE 60 PAÍSES CARIMBADOS NO PASSAPORTE

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