Caro leitor,
em muitos relatos de militares envolvidos em guerras surgem passagens em que se põem diante de um falso dilema: lutar bem ou vencer. Essa ideia está ligada à crença de que sem derramamento de sangue não se vence um conflito ou que a comiseração diante do inimigo equivale a um tiro no próprio pé, uma fraqueza que não aconteceria se a força e a decisão fossem usadas para neutralizar rapidamente o oponente.
Muitos militares lembraram do dilema quando confrontados com a declaração do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, que classificou o comandante do Destacamento de Operações de Informações do 2º Exército (DOI/II), coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, como um homem honrado. “Ele respeitava os direitos humanos de seus subordinados”, afirmou à Deutsche Welle o general sobre o homem por quem fora comandado, no 16.º Grupo de Artilharia de Campanha, no Rio Grande do Sul. Mourão, portanto, atestaria a honra de seu antigo chefe sem ter trabalhado com o coronel no quartel do DOI.
Há militares que defendem a tortura – Mourão diz não ser seu caso –, mas poucos são os que defendem as execuções de prisioneiros. Há os que procuram desacreditar as vítimas, que relatariam sevícias só para comprometer a imagem do Exército. É preciso, pois, relembrar o que Ustra dizia: "Não é possível aplicar a Convenção de Genebra na guerra contra o terrorismo. Em nenhum país assolado pela guerra suja do terrorismo a convenção foi aplicada. Eles não usam uniformes, praticam atos de terrorismo contra inocentes e não respeitam as leis da guerra."
Ustra não usava a palavra tortura. Mas ela se insinuava em seu pensamento. Questionado sobre o que fazia diante de um preso que não queria falar, o coronel afirmou: "Tínhamos de ser rápidos e, às vezes, precisávamos ser um pouco mais duros. Não se trata terrorismo com flores." Ustra só pôde dizer essas coisas porque recebia apoio de colegas. E o apoio vinha de oficiais como Mourão. Faltava a Ustra, porém, a coragem de assumir o que fez. E se ela faltava é porque o coronel precisava sufocar sua verdade.
Respeitar os subordinados nunca foi um problema para Ustra. Seu problema era com os prisioneiros, como o vereador Gilberto Natalini (sem partido). Então um estudante de medicina, seu erro foi ler jornais de organizações clandestinas nos anos 1970. Acabou preso e levado ao inferno da Rua Tutóia, onde conheceu Ustra. “Ele me torturou pessoalmente. É um militar indigno do oficialato." Mourão e seus colegas podem não acreditar no que Natalini disse à coluna. Vale então ouvir e ler o que antigos subordinados e colegas do coronel disseram, confirmando seu papel como comandante de um centro de tortura e morte.
"Ele dava gritos. O Ustra gritava pra car...", contou o capitão de mar e guerra conhecido pelo colegas como Doutor Pimenta, oficial do Centro de Informações da Marinha. Elogiada por Ustra em seu livro Rompendo o Siléncio, a agente Neuza contou o que acontecia com os presos que se recusavam a virar informantes. E citou o dirigente comunista Hiram de Lima Pereira, cujo partido – o PCB - era contrário à luta armada. "Esse que você disse acabou morrendo. Não quis participar. Não queria participar, viajava." Viajar era como os agentes se referiam ao assassinato de presos. Os corpos eram levados a uma represa na região de Avaré, daí a expressão "viajar". Neusa era a tenente da PM paulista Beatriz Martins. Esteve no DOI/II de 1970 a 1975. Sobre a tortura, ela disse: "Eu fui lá fazer um serviço (na sala de interrogatório), alguma coisa, e eu entrei rápido e saí quase correndo. Eu falei: 'Isso aí eu não faço. Eu não faço'. Uma das minhas fraquezas é que interrogatório eu não faço." Neuza ganhou a medalha do pacificador por se envolver em tiroteios que terminaram na morte de cinco guerrilheiros da ALN.
Outro subordinado de Ustra, o tenente Chico disse: "A ordem era matar. Foi preso, fez curso em Cuba ou na China ou na Argélia… um abraço". Ele contou como foi a última noite de vida do guerrilheiro Antonio Benetazzo, que fez curso em Cuba. "A gente sabia que ele ia ser levado para 'viajar'. Aí tocou para mim ficar tomando conta dele, olhando pra cara dele. E aí rapaz eu percebi que eu estava passando a noite com um condenado à morte." Benetazzo foi executado no dia seguinte por quatro agentes do DOI/II. Mataram-no a pedradas, pois queriam simular um atropelamento.
Chico trabalhou bem próximo do Interrogatório. "Você já ouviu falar do inferno? O diabo não passa por perto do pau-de-arara. Com certeza ele respeita e tem medo. Naquela época, tinha um livro muito falado do Solejnitsin, O Arquipélago Gulag. Arrumei o livro emprestado e fui lá no capítulo das torturas. Fui lá e vi que não era nada, que aquilo era um paraíso comparado com aqui." Esses são relatos de subordinados de Ustra, aqueles a quem o honrado coronel tratava com urbanidade.
Se Mourão ou qualquer outro duvidar dessas histórias, basta ouvir os relatos aqui. São trechos de parte de um acervo com cerca de 50 horas de entrevistas gravadas com militares e policiais que trabalharam no DOI/II, no Centro de Informações do Exército (CIE), no Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA) e Centro de Informações da Marinha (CIM). Há ainda 400 páginas de correspondências com oficiais veteranos da "guerra suja" na qual Ustra, como o comandante, era responsável por tudo o que acontecia em seu quartel.
Para além da tentativa de se negar a existência de uma ditadura no País e do uso da tortura no combate à guerra revolucionária, o que espanta na entrevista de Mourão é a incompreensão sobre a guerra. Se a guerra é uma forma de se obter uma paz melhor, que tipo de paz Ustra esperava com seus métodos? Esqueceu que o objetivo militar é apenas um meio de se atingir um fim político? Ou seja desconhecia a diferença entre os objetivos na guerra e os objetivos da guerra? Ustra escolheu vencer "sua guerra". Mas sua vitória – com sequestros, torturas e mortes – ajudou a derrotar politicamente o regime.
Eis uma derrota vergonhosa. Diante da desenvoltura com que seus colegas se empanhavam em um trabalho de tiras, o marechal Cordeiro de Farias se disse espantado com a degradação da instituição militar. Há ainda hoje oficiais e praças contrários à tortura e ao papel desempenhado por Ustra. Lembram dos exemplos do general Osório, no Paraguai, e da Itália. Esta viveu a chaga do terrorismo nos anos 1970 e 1980 – um fenômeno de massa, com as Brigate Rose e Prima Linea – sem que o Estado se tornasse uma ditadura. E como não se produziram desaparecidos ou os abusos não eram regra, nenhuma anistia precisou ser construída. A resposta lá foi judicial.
Mas mesmo ali, quando a inteligência militar italiana entrou na história, também se pôs os pés pelas mãos, como no caso do general Gianadelio Maletti, que protegeu terroristas da extrema-direita nas investigações sobre o atentado em Piazza Fontana, em Milão. O caso italiano devia ser estudado no Brasil. Se Mourão precisava de um exemplo para elogiar, podia usar o do general dos carabineiros Carlos Alberto Dalla Chiesa, que destruiu as Brigadas Vermelhas sem desaparecer com nenhum preso. Usou, para tanto, a lei – ele acabaria morto pela Máfia quando foi combatê-la. Mas isso seria esperar demais do vice-presidente. É que o tipo de resposta dada pela ditadura às ações da esquerda armada condiciona até hoje Mourão. Assim como a realidade deste País.
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