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Por dentro da rede

Opinião|Snapchat e o Bolero de Ravel

Num quadrinho sobre “etiqueta à mesa”, alguém pergunta se o lugar certo do celular é à esquerda, com o garfo, à direita com a faca, ou acima, com os talheres de sobremesa. Deveria ser uma piada… Não tenho certeza se ainda é. Como se diz, o celular e a rede aproximaram os distantes e afastaram os próximos. Duas pessoas digitando sua conversa pelo celular, a metros de distância, não mais espanta.

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Atualização:

Essa abundância de comunicação, por vezes superficial, instantânea, onde todos falam e ouvem o que querem e o que não querem, sem tempo de reflexão, é uma característica ambivalente. A possibilidade de ampla comunicação é uma das grandes conquistas positivas da internet. Por outro lado, há a pletora de fotografias, de vídeos que todos tiram e todos mandam o tempo todo. É um momento passageiro de deslumbramento, ou algo definitivo? Quem viver, verá.

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A transformação no comportamento é especialmente notável entre os mais jovens. Mário Quintana capta magnificamente essa mudança: “Quando guri, eu tinha de me calar à mesa: só as pessoas grandes falavam. Agora, depois de adulto, tenho de ficar calado para as crianças falarem.” Mas é prematuro tentar dar valor positivo ou negativo a isso. Há de se aguardar uma estabilização. Um exemplo vivo dos novos tempos são os aplicativos preferidos dos jovens, dentre eles o Snapchat. Só o conheço tangencialmente, mas sei que a agilidade, a possibilidade de permitir alterações bem humoradas em fotos e a pouca duração dos dados que por ele transitam o fizeram cair no gosto deles.

A exibição pessoal sem limites é característica da época, de narcisismo e de hedonismo. Mostramo-nos a todos, de todas as formas, e ainda por cima nos ofendemos se alguém critica o que postamos. A falta de critérios sobre o que comunicar faz com que a privacidade, já tão ameaçada pela internet, fique ainda mais vulnerável. Mesmo a promessa de volatilidade dos dados do Snapchat deve ser vista com suspeição: é sempre bom relembrar que a internet não esquece e, pior, insiste em manter aquilo que mais gostaríamos de esquecer. Um deslize, uma foto comprometedora, uma frase inadequada, nos assombrarão no futuro. Hoje, à revelia do candidato, um currículo é enriquecido pelo que ele tem feito, ou pior, pelo que dizem dele na rede, seja verdadeiro ou falso. É inegável e espantoso o potencial da informação.

Enquanto pensava no assunto, eu assistia ao Bolero de Ravel pela Sinfônica de Londres, regida por Valery Gergiev, e tive uma “revelação”: há várias leituras do Bolero e uma interessante seria compará-lo à evolução do bicho-homem em direção à racionalidade e à tecnologia.

O Bolero começa com um sutil rufar de tarol (a aurora do pensamento?), depois madeiras, cordas em pizzicato. O tema obsessivo segue com toda a orquestra assumindo-o, numa tensão crescente (idade clássica?). As cordas entram uníssonas, metais, tímpanos (revolução francesa?). Mais percussão, gongos, bumbo (grandes guerras?). E, quando afinal o progresso e a tecnologia estão no clímax, há uma rápida mudança de tonalidade, um acorde fortíssimo e o aterrador e dissonante final. Terminaremos assim?

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Opinião por Demi Getschko
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