Ela reencontrou na poesia a vontade de viver após perder a visão: ‘Enxergo com os olhos dos outros’

Dona Edite, 81 anos, usa seus poemas contra o racismo e se apresenta toda semana no sarau da Cooperifa, no extremo-sul de São Paulo

PUBLICIDADE

Por Laila Nery

A poetisa Dona Edite se levantou, segurou uma mão amiga e foi guiada até o microfone. Pequena, magra e negra, suas roupas estavam cobertas por um blazer preto e um cachecol vermelho em uma noite chuvosa. Seus crespos cabelos brancos entregam os 81 anos, 12 de poesia. “Uh! Dona Edite!”, gritou a plateia que se formou para vê-la, como em todas as vezes em que se apresenta no sarau da Cooperifa, no Bar do Zé Batidão, que fica no Jardim Guarujá, bairro periférico do extremo-sul de São Paulo.

PUBLICIDADE

O amor pela poesia chegou quando ela perdeu a visão para a diabetes e o glaucoma. Dona Edite chegou a pensar que a vida havia acabado ali, ficou muito tempo em casa. ”Sem poder ler, sem ouvir as minhas músicas, sem poder fazer as minhas coisinhas”, recorda a poetisa. Foram dois anos de terapia até o momento que um novo mundo chegou para ela: e pelos ouvidos!

No Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde recebia acompanhamento psicológico, ela entendeu que não era a única pessoa que não enxergava no mundo. “Eu vi ali, com a ajuda da terapeuta, que ficar só dentro de casa me prejudicava. Descobri o Dorina Nowill (fundação para cegos) e foi como se eu tivesse encontrado o paraíso”, relembra. “Foi o momento em que os audiolivros entraram na minha vida, eu comprei um walkman e passei a emprestar três a quatro livros por semana, sempre que devolvia pegava outros.”

Amor de Dona Edite pela poesia começou depois que ela perdeu a visão para a diabetes e o glaucoma Foto: MARCELO CHELLO/ESTADÃO

Foi uma sobrinha de Dona Edite que a introduziu no mundo das poesias, quando ela já tinha seus quase 70 anos. Ela percebeu que a tia estava reencontrando o amor pela vida ouvindo livros por fitas-cassetes e decidiu presenteá-la com fitas de músicas e poesias gravadas. “Muitas das poesias que eu declamo hoje ainda são músicas dessa primeira leva que eu ouvia.”

Dona Edite sentiu o amor pela vida expandir em seu coração na primeira vez que ouviu o poema Estas Mãos, de Cora Coralina. “Eu nem gravei em fita de cassete. Ouvi uma pessoa declamar, achei tão linda e pedi que a minha sobrinha trouxesse para mim. Pensei ‘de que adianta, se eu não posso ler?’” Com a ajuda da irmã, Zazá, dona Edite decorou a poesia. “Zazá nunca gostou de ler, mas ela vinha, lia uma estrofe ou outra, pedi que ela repetisse muitas vezes.”

Hoje é Zazá quem acompanha a poetisa nos compromissos em saraus. A primeira vez foi numa festa do Grupo Flor de Lis, composto por mulheres idosas que frequentam a Casa Popular de Cultura do M’Boi Mirim. A apresentação chamou tanta atenção que ela foi convidada para declamar no sarau da Cooperifa.

“Naquela primeira vez aqui eu também declamei Aquelas Mãos e depois fiquei ouvindo aquele tanto de poesia. Umas poesias tão lindas!”, conta dona Edite, que se enveredou na busca por outros poemas para contar para aqueles poetas. “Aqui, são tantas poesias lindas que são recitadas, por gente de todas idades, as vezes eu coloco a cabeça no travesseiro e lembro de uma poesia que foi declamada; é difícil de dormir após tanta filosofia!”

Publicidade

Agora, a maioria já são amigos de longa data que ela reconhece até mesmo sem ouvir a voz. Todos que chegam para o sarau a cumprimentam e, na maioria das vezes, ela reconhece pela forma como seguram as suas mãos, pelo abraço, pelo toque nas suas bochechas.

“Está me confundindo! Como você me reconheceu se eu nem falei com a senhora?”, brinca um amigo que compara a memória de dona Edite a um HD sem limites de armazenamento. “É Cocão sim! Somente você daqui fica apertando as minhas bochechas dessa maneira!”, confirma a senhora, que aprendeu com a cegueira a decifrar o mundo com ouvidos, olfato e tato.

Dona Edite manda uma mensagem para quem perdeu a visão e acha que a vida acabou: 'A imagem dos olhos é um fator da vida, mas não é o único fator' Foto: MARCELO CHELLO/ESTADÃO

Os artistas que se apresentam no sarau da Cooperifa são, em sua maioria, negros e do extremo sul de São Paulo. Alguns reúnem colegas de escola para assistir às suas apresentações e Dona Edite adora ouvi-los. ela se lembra da própria juventude “eu queria estudar e não podia.”

Dona Edite começou os estudos aos 17 anos e o amor pela literatura permaneceu na sua vida desde então, contudo, ela lamenta não ter tido tanto acesso a livros quando jovem. As dificuldades financeiras da família a obrigaram a ingressar no mercado de trabalho muito nova e esse amor só podia ser nutrido no pouco tempo e com o pouco dinheiro que sobrava. Sua aproximação com a Cooperifa foi um dos fatores que ajudaram dona Edite a compreender esse mundo em que vive, onde questões raciais e de classe social interferiram nas suas oportunidades.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

“Eu sentia tanta vontade de comprar livros, ler mais, mas era muito difícil, aquela dificuldade para comprar um livro sequer”, comenta. “Por isso, a poesia para mim está em mim! Tão gravada no meu interior que os poemas que eu escolho tem muito a ver com o meu âmago, com a insatisfação e as injustiças que me deparei no caminho da minha vida e que vejo também nos percursos de outras pessoas.”

Para a noite ela escolheu uma poesia do fundador da Cooperifa, Sérgio Vaz, Literatura das Ruas. “A literatura é dama triste, que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia”, declama a poesia, escolhida a dedo, porque sabia que seria entrevistada nesta noite. “Me muni com essa, desse poeta maravilhoso, na bienal ele foi o segundo mais vendido.”

As poesias que ela mais gosta a representam como mulher negra e periférica. Sérgio Vaz é um dos poetas favoritos dela, que também é fã de Maria Bethânia, Clarice Lispector, Cora Coralina e Castro Alves. “Me sinto nesse meio, das mulheres, negras, periféricas, que são recriminadas e como eu tenho a oportunidade do microfone e da comunicação, acentuo esse lado nas minhas poesias”, comenta. “Sempre existe esse grito – de não se acomodar. Me emociono muito. Os meus ancestrais também me acompanham quando eu declamo.”

Publicidade

Dona Edite se vê num mundo em que as mulheres e as pessoas negras estão conseguindo avançar nas conquistas por direitos, mesmo que haja repressão “já fomos muito pisoteados”, comenta ela que viu o quanto o País avançou após a Lei nº 7.716, que configura o racismo como crime desde 1989. “Agora tem lei, existem avanços, mesmo que ainda exista muito a ser reivindicado.”

Apesar do sotaque paulistano, ela nasceu em Minas Gerais, às margens do Rio São Francisco, que também é uma fonte de inspiração. Sua cidade natal se chama Piraporanga, “eu me lembro do barulho das águas, do verde, dos pássaros”, conta. “Sinto saudade, mas eu amo São Paulo.”

A mudança de Estado foi motivada pelas dificuldades financeiras que a sua família enfrentava. A irmã Zazá foi a primeira a migrar para São Paulo e aqui começou a atuar na metalurgia, Edite veio após dois anos. “Não dava pra sobreviver, eu vim e três dos meus irmãos e a minha mãe ficaram. Depois que juntamos um dinheiro a gente mandou buscá-los”, relembra. Foi a primeira vez que ela trabalhou com registro em carteira, também como metalúrgica. Foram mais de 21 anos de dedicação à profissão.

Quando se aposentou, devido à cegueira, foram seis anos sem contato com o mundo exterior. “Eu não saía de casa, do meu quarto”, recorda aquele momento que foi a verdadeira escuridão em sua vida. “Eu não abraçava ninguém, não via pessoas. Hoje eu as toco, seguro as suas mãos, as beijo. Não tem nada na vida que tenha mais valor que isso, é indispensável.”

“Gosto daquela frase da Clarice (Lispector): ‘Liberdade é pouco e o que eu sinto ainda não tem nome.’” Dona Edite se inspira na escritora e segue os seus passos nessa busca incansável pela vida e pela busca pela liberdade, sentimento que ela acreditava ser impossível de ser alcançado após perder a visão. Toda vez que decora uma poesia, a idosa começa a aprender outra, e outra e mais outra. “Quero entender o meu ser em meio ao mundo, faz pouco tempo que voltei a mim mesma!”

“O que eu quero expressar está gravado em mim, no meu sangue, nas minhas ações, nas minhas atitudes, no meio que eu lido. Eu descobri muita coisa ao longo da vida”, conta dona Edite, que manda uma mensagem para as pessoas que perderam a visão e acham que a vida acabou.

“A imagem dos olhos é um fator da vida, mas não é o único fator. Eu perdi esse fator da vida, mas não perdi os outros! Eu fui à luta porque eu acredito nos seres humanos! Eu enxergo sim, com os olhos dos outros, com os pés, com as mãos que apertam as minhas e as bocas que me beijam, com os abraços que eu ganho. A poesia é a expressão maior do meu ser mais íntimo: esse ser que eu amo, esse ser que eu busco e que eu me encontro em cada ser, em cada pessoa que eu encontro e me estende a mão. E, claro, nas minhas poesias, que falam mais do que eu, ou a minha voz.”

Publicidade

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a Cooperifa

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.