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Estelionatos eleitorais

Artigo publicado originalmente no Estadão Noite Tem sido alardeado que o conjunto de políticas adotado desde que se definiu o candidato vencedor na última eleição é um atestado inequívoco de “estelionato eleitoral”. O termo é forte, e talvez não o mais adequado, mas já há um bom tempo tem sido utilizado no jargão da política brasileira. Infelizmente, reflete práticas que devem ser fortemente combatidas.

Por Rogerio P. de Andrade
Atualização:

O termo serve para caracterizar aquelas situações em que há uma inconsistência entre o discurso adotado ao longo de uma campanha eleitoral e a prática subsequente em termos das políticas implementadas. Os eleitores que elegeram um candidato com base em uma determinada plataforma política de repente são agraciados com um conjunto de medidas que vão na contramão do que tinha sido apregoado. Se a expressão denota essas situações, não é a primeira vez que nos deparamos com elas, e muito provavelmente nem será a última. Senão vejamos.

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Tomando como ponto de partida a Nova República, o primeiro “estelionato eleitoral”, e talvez o mais grandioso e imbatível de todos eles, foram as medidas de ajuste após o primeiro turno das eleições de 1986, ocasião em que o PMDB elegeu uma maioria esmagadora de governadores e parlamentares. Aliás, diga-se de passagem, o mesmo PMDB que hoje faz seu teatro fisiológico para assegurar seus interesses paroquiais. É a mesma erva daninha da política brasileira que, junto a outras, tem sistematicamente relegado o País ao atraso político e, por tabela, econômico. Como de praxe, faz-se mister reconhecer que nele existem (existiam?) honrosas exceções, mas são cada vez mais raras e sem poder político efetivo no partido.

No início de 1986 foi implementado o Plano Cruzado, o primeiro plano heterodoxo de combate à inflação crônica que resistia bravamente às tentativas de baixá-la por meio de políticas ortodoxas de controle da demanda (leia-se: arrocho fiscal, monetário e salarial). Um pilar crucial do plano foi o congelamento dos preços, inclusive da taxa de câmbio nominal e das tarifas públicas. Os preços permaneceram congelados durante um período longo, até que vieram as eleições. A conquista da inflação baixa foi a principal bandeira dos candidatos situacionistas e o governo Sarney e seus aliados foram os grandes beneficiados. Com as urnas abertas, veio o ajuste (o chamado Cruzadinho), que significou, entre outras coisas, reajuste de tarifas públicas da ordem de 100%, em um contexto em que a inflação era baixa (em comparação com o período anterior ao plano) e oscilando entre 1% e 2% ao mês. Foi como jogar lenha (banhada em gasolina) na fogueira - e não demorou muito para o plano ir por água abaixo.

O segundo “embuste” deu-se de 1998 para 1999. Sentindo os efeitos da crise asiática que começou em meados de 1997, inicialmente na Tailândia, e da crise russa no segundo semestre de 1998, o governo de então viu-se às voltas com uma erosão maciça de reservas cambiais ao longo de 1998, um ano eleitoral. Após as eleições, recorreu ao Fundo Monetário Internacional para viabilizar o financiamento do balanço de pagamentos e “dar uma satisfação” aos mercados. A reboque dos acontecimentos, e sem poder de fogo para se defender dos ataques especulativos contra a moeda local, viu-se obrigado a mudar o regime cambial e a elevar bruscamente a taxa de juros em março de 1999 (que já tinha sido elevada em dezembro de 1998). O que era uma promessa de nirvana pós-eleitoral virou um pesadelo ao longo de 1999, com inflação de 8,9% e crescimento pífio de 0,5%.

A terceira “enganação” deu-se em 2003, quando a primeira aliança de centro-esquerda vitoriosa no País manteve as políticas concebidas e implementadas pelo governo anterior, embora ao longo da campanha eleitoral de 2002 o discurso fosse outro. O novo governo optou por combater a inflação de 12,5%, legada pela administração anterior, através de um mix de políticas contracionistas. A taxa de juros manteve-se elevada ao longo do primeiro semestre de 2003. Como não poderia deixar de ser, o crescimento no ano foi de apenas 1,2%.

O quarto e último “engodo” é o que estamos presenciando. Sobre ele não há muito o que falar, visto que monopoliza diariamente a atenção da mídia. Mas talvez seja o caso de refletir rapidamente sobre as possíveis causas dessa incongruência entre discurso e prática.

Uma possível resposta é a falta de nitidez ideológica do quadro partidário, somada às distorções do “presidencialismo de coalizão”. A política virou um meio de alcançar fins não raro escusos e impublicáveis, e não um instrumento para promover mudanças institucionais que viabilizem o desenvolvimento socioeconômico do País. Não há mecanismos que controlem as róseas promessas eleitoreiras, nem de efetiva cobrança pós-eleitoral.

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Sobrepõe-se a isso o excessivo poder de alguns setores da sociedade de impor seus interesses econômicos sobre os demais. Não só no Brasil, mas também em outros países, há uma hegemonia nefasta da agenda dos mercados financeiros em detrimento da de outros grupos. É imprescindível abrir um amplo debate para problematizar melhor esta situação, que é inconcebível em uma sociedade democrática que se pretende mais justa.

No frigir dos ovos, faz-se mister, portanto, criar instituições que disciplinem minimamente esses padrões perversos de comportamento, tão evidentes no País.* Rogerio P. de Andrade é doutor em economia pela Universidade de Londres (UCL), professor do IE/Unicamp e pesquisador do CNPq

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