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Imigrantes venezuelanos lidam com miséria e doenças em abrigo improvisado no Acre

Famílias inteiras dormem juntas em acomodações com até 30 pessoas; deslocamento demorou mais que o esperado por causa da suspensão de vistos

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Por João Renato Jácome
Atualização:

IÑAPARI e ASSIS BRASIL - Quem chega à cidade de Assis Brasil, no interior do Acre, distante 330 quilômetros da capital Rio Branco, não imagina o drama vivido por cerca de 70 famílias alojadas numa pequena escola pública de ensino infantil pertencente ao município. Os migrantes são 90% venezuelanos e 10% homens e mulheres de países distintos.

Além das condições insalubres do espaço que, desde março, já recebeu mais de 1,5 mil estrangeiros, os migrantes precisam superar a saudade, a fome e a incerteza sobre o que vão conseguir no território brasileiro. Muitos nem documentos pessoais têm, ou foram roubados ou deixados para trás.

Venezuelanos são acolhidos na Escola de Educacao Infantil Edilsa Maria Batista, em Assis Brasil Foto: Odair Leal/Estadão

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A escola, deteriorada pelo grande volume de estrangeiros que já utilizou o lugar, não comporta mais pessoas: há falta de água, os aparelhos de ar-condicionado quebraram e a rede de esgoto estourou. Até uma fossa foi cavada nos fundos da cozinha, pelos próprios alojados, para que consigam fazer as necessidades básicas.

Com os problemas coletivos de higiene, crianças e adultos começaram a ficar doentes. Os pais e mães acreditam que os menores são vítimas da insalubridade encontrada na escola. No último sábado, 31, o abrigo já estava sem água para o banho há dois dias, problema que segundo o Departamento de Água e Saneamento (Depasa) se deu porque a bomba da cidade queimou.

Separado pelo Rio Acre, o município de Assis Brasil faz divisa com a cidade peruana de Inãpari. Com poucos policiais na faixa de fronteira, é quase impossível controlar a passagem ilegal dos migrantes de uma cidade para outra, o que geralmente ocorre durante a madrugada, pelos varadouros – trilhas abertas na mata, e depois com a travessia a pé pelo rio, com a água na altura do peito.

 A travessia arriscada é para todos, incluindo crianças e idosos. Uma das imigrantes, Lyscanen Garrido, de 25 anos, trouxe ao Brasil a filha de três anos e fez a travessia ilegal no dia 12 de outubro. A jovem pretende seguir viagem para Tangará da Serra, no Mato Grosso. Lá vai encontrar a mãe de 59 anos, e o irmão, de 13 anos, que tem problemas de mobilidade.

Lyscanen Virginia Aldeida Garrido, venezuelana que está no Brasil Foto: Odair Leal/Estadão

Lyscanen explica que fazer o trajeto pelo Acre é mais fácil e barato, por isso muitos dos estrangeiros estão chegando à cidade de Assis Brasil. “Tem uma trilha no caminho. Quando o rio fica baixo é possível caminhar. Ninguém está passando pela ponte, porque não pode. Se eu for embora, eles não deixam passar e entrar de volta no Peru”, conta.

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Lyscanen frisa que, entre os estrangeiros alojados na escola, o maior medo é não serem aceitos pelo governo brasileiro. “Eu não tenho mais dinheiro. Se eu voltar para o Peru, onde eu vou morar? Eu tenho medo de passar fome. Se eu ficar na rua, vai ficar muito ruim para mim e para a minha filha. Ninguém quer que o filho passe fome. Eu tenho para onde ir, minha mãe e irmão estão me esperando”, afirma a jovem venezuelana.

Não muito diferente de Lyscanen, o engenheiro eletrotécnico Angel Gutiérrez, de 39 anos, diz que já tem destino certo no Brasil: quer encontrar com um amigo também venezuelano no Paraná, onde teria emprego garantido em um frigorífico. Mas, para isso, precisa estar legalizado junto ao governo federal. Depois, quer trazer os dois filhos, a mãe de 79 anos, e a esposa, que já está no Peru.

Angel Sanchez Gutierrez tenta a sorte no Brasil Foto: Odair Leal/Estadão

“Vim para cá em busca de uma oportunidade de trabalho. Eu quero trabalhar, não quero depender das pessoas. Fiquei um tempo no Peru, mas lá não me pagam como a um peruano. Se tiver sorte, alguns conseguem trabalhar na área de formação, mas isso não é para todos, são exceções”, alega o venezuelano ao destacar que está ansioso com o dia que poderá deixar o abrigo em Assis Brasil.

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Segundo Gutiérrez, o imigrante foi informado inicialmente que no Peru ele teria bom emprego e salário digno, mas chegando ao país andino descobriu que tudo não passava de palavras. O engenheiro entrou no Brasil ilegalmente e disse que a polícia peruana foi quem o orientou a atravessar a fronteira dessa forma, sozinho, pelo rio, e depois pedir refúgio no abrigo criado pela prefeitura.

“Eu cruzei em um barco. Fui na polícia, e me disseram que a fronteira estava fechada, e que não passava ninguém. Então eles me disseram que aqui tinha um abrigo gratuito da igreja e que tinha esse refúgio, e me sugeriram a vir para cá. Eu vim sozinho no dia 19 de outubro”, revela.

Fossa cavada no fundo da cozinha do abrigo improvisado Foto: Odair Leal/Estadão

O nigeriano Stanley Emeríbe Chibuzo, de 30 anos, é um caso à parte: há 30 dias no abrigo, o estrangeiro não sabe falar espanhol ou português – o que poderia facilitar a comunicação com outras pessoas no abrigo ou na cidade. Chibuzo é farmacêutico e pretende se instalar no estado de São Paulo.

“Eu vim para o Brasil devido aos problemas constantes no meu país. Além da perseguição, há muitos assassinatos, muitos processos judiciais, o que coloca a gente em risco. Eu vim para o Brasil em busca de segurança. Eu quero ir para Rio Branco e depois para São Paulo, para trabalhar na área de farmácia”, diz.

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A situação de Stanley é uma das mais difíceis. Junto com ele está um amigo, também nigeriano, que o acompanhou na fuga do país africano a Lima, capital do Peru, e depois Iñapari. O deslocamento até Assis Brasil custou US$ 2,8 mil – cerca de R$ 16 mil – e a ideia é trazer um dos irmãos e a noiva para o Brasil assim que conseguir emprego no Acre ou em São Paulo.

“Eu estou prestes a me casar na Nigéria. Se eu tiver uma oportunidade aqui no Brasil, eu posso trazer o meu irmão mais novo que ainda está lá. O que eu quero é um emprego, porque eu não tenho nenhum problema de saúde, nada que me atrapalhe aqui para conseguir emprego”, avisa.

Chibuzo diz também que está temeroso com a demorada espera pela documentação brasileira. “O meu maior medo aqui é não saber quando ou como entrar no Brasil legalmente. Eu não quero voltar para a Nigéria, porque há muitas guerras e conflitos lá. Quero estar aqui, em segurança”, diz, temeroso.

Dramas familiares

Lyscanen Garrido não foi a única mãe que chegou ao município de Assis Brasil. A professora Angélica Rondon, de 33 anos, também pediu ajuda às autoridades brasileiras, e está no abrigo junto ao marido e três filhos. Uma das crianças é autista e tem seis anos. Quase não consegue se comunicar, o que exige ainda mais atenção.

A família de imigrantes quer uma nova vida no Paraná, onde familiares já estão conseguindo trabalhar e juntar dinheiro. Semelhante aos demais estrangeiros que chegam ao Acre, o “projeto de vida” dos imigrantes é estabelecer base e ajudar outros familiares a saírem dos países de origem e viajarem até o Brasil.

“Aqui no Brasil eu quero trabalhar na área de ensino especial. Nós atravessamos a fronteira pelo rio, ilegalmente, todos juntos. Viemos de carro e caminhão, de carona, até a fronteira e aqui atravessamos pelo rio. A polícia não me viu passando. Eles só nos pararam antes, quando fomos lá e disseram que não podíamos passar porque a fronteira estava fechada”, contou a venezuelana.

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A idosa Lívia Mendes, de 67 anos, também está no abrigo improvisado, e é uma das pessoas de mais idade no local, segundo a equipe de Serviço Social da prefeitura de Assis Brasil. Está acompanhada de um sobrinho, um neto e a esposa, além de três crianças pequenas e um adolescente.

Livia Mendes, de 67 anos, veio com parte da família da Venezuela para o Brasil Foto: Odair Leal/Estadão

A venezuelana disse que veio para o Brasil porque não aguentava mais a miséria. No abrigo, divide uma das salas de aula utilizadas como dormitório com outras 27 pessoas e revive as dificuldades que tinha na Venezuela, para onde diz que não deseja voltar mais. “Tenho um sobrinho que está me esperando no Mato Grosso do Sul”, destaca.

A idosa diz que foi até a Polícia Federal em Assis Brasil, mas foi mandada de volta porque a emissão do registro de entrada não está liberada. Dessa forma, os imigrantes não podem seguir viagem para outros estados do país. “Mandaram esperar abrir a fronteira. Por que não nos deram os documentos logo?”, questiona.

Lívia também precisou atravessar o Rio Acre caminhando por baixo da ponte que liga Assis Brasil a Iñapari. “Aqui está muito difícil. Eu quero estar com a minha família toda aqui no Brasil. Meus netos vão trabalhar e eu vou cuidar das crianças. Eu estou muito sensível, sou idosa, e tenho problemas de saúde”, explica ao pedir ajuda ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.

“Quero que o presidente tenha em mente que estamos precisando desse refúgio. Queremos que eles nos dê abrigo, refúgio. Aqui há muita gente reprimida, doente, e é possível que haja uma epidemia de enfermidades ou algo mais grave nesse lugar. Queremos que o presidente cumpra com o seu papel e nos ajude”, diz.

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