Mortes em série pela PM no Guarujá repetem lógica de ‘operação vingança’ após ataques a policiais

Estudos apontam padrão de resposta desencadeada após violência contra agentes de segurança. Governo de SP defende legalidade da atuação no litoral e dará continuidade à ação

PUBLICIDADE

Foto do author Marco Antônio Carvalho
Foto do author Marcio Dolzan
Por Marco Antônio Carvalho e Marcio Dolzan
Atualização:

Estudos brasileiros que se debruçam sobre a dinâmica das mortes cometidas pelas polícias já identificaram reiteradas vezes o funcionamento das chamadas “operações vingança”. Essas ações são caracterizadas por mortes em série cometidas em supostos confrontos na esteira de ocorrências letais contra agentes de segurança pública. Neste fim de semana, houve 14 mortos no Guarujá, litoral de São Paulo, após um soldado da Rota ser assassinado por um criminoso na cidade dias antes.

O governo de São Paulo defendeu na segunda-feira, 31, a legalidade da atuação policial na Baixada Santista sob a alegação de enfrentamento ao crime organizado e reação proporcional à ameaça de confrontos no local. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que todos os casos serão investigados, mas ressaltou que a operação vai continuar. A Ouvidoria cobra apuração e parentes dos mortos relatam indícios de execuções e tortura nas abordagens. O governo nega.

Policial mostra pistola apreendida e que supostamente foi usada no assassinado no soldado da Rota no Guarujá Foto: Taba Benedicto/Estadão

PUBLICIDADE

O caso do Guarujá repete uma dinâmica conhecida por pesquisadores que estudam a letalidade policial no País: ações com caráter de revanche em reação à violência praticada contra agentes. Para especialistas, ações com esse perfil contrariam previsões legais, colocam comunidades inteiras sob clima de medo e ameaça de tiroteios.

Além disso, essas respostas desencadeiam confrontos cada vez mais letais, o que põe sob risco crescente as próprias forças de segurança. Nesta terça-feira, 1º, mais dois PMs foram baleados em Santos.

Um dos casos de maior expressão na última década em São Paulo foi a chacina de Osasco e Barueri, em 2015, que teve 17 mortos e sete feridos na região metropolitana da capital. Dias antes, um PM e um guarda civil haviam sido mortos na região.

O Ministério Público de São Paulo apresentou à Justiça a acusação de que policiais e guardas se juntaram com intuito de vingança. Entre os mortos, nenhum indício foi reunido de que teriam qualquer ligação com os assassinatos dos agentes que desencadearam a matança na Grande São Paulo.

Ao decidir pela indenização à família de uma das vítimas no ano passado, a Justiça reconheceu o papel dos agentes do Estado na realização do crime. Dois agentes foram condenados e outros dois foram absolvidos pelo júri.

Publicidade

Em 2015, chacina de Osasco e Barueri deixou 17 mortos e sete feridos Foto: Rafael Arbex/Estadão - 15-8-2015

Ao Estadão, o coordenador de Projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques, disse que ficou “bastante claro que a polícia estava querendo algum tipo de revanche” no caso mais recente do Guarujá.

“É evidente que a gente tem de lamentar muito a morte do policial em serviço. Isso é algo inadmissível. Ele é representante do Estado, foi colocado pela sociedade nessa função, e não podemos esquecer isso. Mas também é importante lembrar que, em um contexto democrático e de uma sociedade que tem um conjunto de leis que balizam a sua própria Justiça, não cabe espaço para ‘operação vingança’ dentro da atuação das forças policiais do Estado”, afirma.

Em nota divulgada nesta segunda, o Instituto Sou da Paz destacou que os “eventos no Guarujá não podem ser lidos como um caso isolado e remetem a outros ciclos de violência após a morte de um policial”.

“Ainda mais preocupante”, acrescenta a organização, “esses eventos se inserem em contexto de fragilização do bem-sucedido programa de gestão do uso da força, que culminou com a expressiva redução da letalidade policial com o uso de câmeras corporais”.

PUBLICIDADE

As mortes cometidas pela polícia apresentaram alta no 1º semestre, após queda recorde em 2022. Foram 221 registros, ante 202 no mesmo período do ano passado. Os casos foram puxados por ocorrências envolvendo agentes em serviço, que saltaram 28,57% de janeiro a junho – de 133 para 171.

Vingança policial torna operações mais letais

O modelo de atuação policial não é específico de São Paulo e é visto também no Rio. Um caso emblemático aconteceu no Complexo do Salgueiro, na zona norte carioca, em novembro de 2021. Lá, corpos foram retirados do mangue dias após um sargento ser baleado em um patrulhamento. O clima de terror se instalou na comunidade até resultar nas mortes em série de pessoas cuja relação com o assassinato do policial nunca chegou a ser formalmente esclarecida.

Corpos foram encontrados em mangue no Complexo do Salgueiro Foto: REUTERS/Ricardo Moraes

O Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), elaborou um relatório sobre o que classificou de “chacinas policiais”, mortes múltiplas com três ou mais óbitos decorrentes das ações policiais. O estudo analisou as motivações para as ocorrências entre 2007 e 2021 no Estado do Rio e concluiu que as operações de vingança deixaram o maior número médio de vítimas por ocorrência, com 5,1 mortos em cada caso.

Publicidade

As dinâmicas, explicaram os pesquisadores, nem sempre são claramente definidas. Para exemplificar, lembraram do caso na favela do Jacarezinho, onde uma operação da polícia também em 2021 terminou com 28 mortos, entre eles um policial.

“Esta seria uma operação planejada e com mandado de busca. Contudo, logo que as forças policiais chegaram ao Jacarezinho, às 6h da manhã, o inspetor André Leonardo de Mello Frias foi alvejado com um tiro na cabeça. A operação declarada como motivada por ‘mandado de prisão’ converteu-se em ‘retaliação por morte ou ataque a unidade policial’ e, devido a este infortúnio, a lógica da vingança se sobrepôs ao cumprimento do mandado judicial”, escreveram no relatório.

Mortes no Jacarezinho em 2021 motivaram protestos Foto: Ricardo Moares/Reuters

“Não só o número de mortos influencia a hipótese da vingança, mas, sobretudo, a velocidade de sua produção. Segundo relatado, 17 das 28 vítimas foram mortas apenas nas primeiras duas horas de operação. Entre as denúncias feitas por moradores, está a alegação de que, em diversas ocasiões, a rendição foi negada aos envolvidos no confronto pelos policiais, resultando em execuções”, acrescentaram.

Sobre Jacarezinho, o Ministério Público do Rio destacou os resultados de uma força-tarefa criada para atuar no caso. Três denúncias foram apresentadas à Justiça contra quatro policiais e outras duas pessoas apontadas como traficantes. Contra os agentes, práticas de homicídio doloso e fraude processual foram denunciadas. Contra traficantes, a acusação se deveu pela morte do inspetor da polícia. Outros dez procedimentos de investigação foram arquivados por falta de evidências.

“Durante sua vigência, de apenas um ano, a força-tarefa conseguiu dar respostas efetivas à sociedade fluminense sobre a atuação da Polícia Civil durante a intervenção na comunidade, graças à atuação coletiva especializada, que contou, inclusive, com investigações próprias”, informou em nota. Procurada, a Polícia Civil do Rio não comentou os casos de Jacarezinho e do Salgueiro.

Esquadrão da Morte prometia 10 óbitos a cada policial atingido

A reação articulada, desproporcional e ilegal de agentes de segurança a mortes de colegas de farda não é uma realidade nova. Pesquisadores costumam ter no Esquadrão da Morte uma referência para esse tipo de prática de vingança, que era adotada pelo grupo desde o fim dos anos 1960 em contexto favorecido pela ditadura militar.

“Chacinas eram realizadas através da lógica da vingança e, a cada policial morto, eram assassinadas dez pessoas”, lembram Camila de Lima Vedovello e Arlete Moysés Rodrigues em artigo publicado na Revista de Estudos Empíricos em Direito. A conta é atribuída ao relato de Hélio Bicudo, que como procurador de Justiça investigou os crimes do Esquadrão da Morte.

Publicidade

No Estado, as chacinas atingiram um ápice em volume ao longo dos anos 1990, e mudaram de característica ao longo na década seguinte. Se antes essas dinâmicas eram próprias da disputa entre grupos criminosos rivais, posteriormente passam a estar mais atreladas à atuação policial, seja ela em uma atuação formal, do agente em serviço, ou dos policiais que se juntavam para em horário de folga efetuar assassinatos que consideravam devidos.

“Os executores das chacinas foram se modificando ao longo do tempo, ou melhor, muitos atores foram saindo de cena e as chacinas começaram a ser um negócio de polícia”, afirmam as pesquisadoras ligadas à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“Quando são as polícias ou agentes estatais de segurança que efetuam as chacinas, expressam as mais variadas possibilidades de disputas e conflitos entre agentes de segurança pública e o mundo do crime e ou domínio de territórios por esses agentes, dentro da lógica militarizada da guerra, expressando também formas de vingança institucional.”

Os executores das chacinas foram se modificando ao longo do tempo, ou melhor, muitos atores foram saindo de cena e as chacinas começaram a ser um negócio de polícia.

Camila de Lima Vedovello e Arlete Moysés Rodrigues, pesquisadoras

Para Ariadne Natal, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF), a operação no Guarujá chama especial atenção por ter sido uma ação oficial do Estado. “Já tivemos no passado casos de policiais mortos em serviço que desencadearam operações violentas por parte da polícia, mas nem sempre da forma como tem acontecido no Guarujá”, afirma.

“Tivemos os eventos de maio de 2006, e outras dinâmicas de policiais mortos e chacinas acontecendo, em 2012. Mas o que aconteceu agora tem a especificidade de ser uma resposta bastante rápida, e numa operação oficial. Não são ações extraoficiais ou de grupos de extermínio”, destaca.

A pesquisadora ressalta que o resultado da ação, com mais de uma dezena de mortes, “se assemelha à vingança” e traz consequências que vão muito além do que aconteceu nos últimos dias na região.

“Justiça significa investigação, oitiva com testemunhas, coleta de provas, identificação e punição dos responsáveis. Sufocar uma comunidade, ameaçar uma comunidade, tratar de maneira violenta as pessoas com base onde elas moram, isso não é uma resposta que se assemelha à Justiça. Isso se assemelha à vingança, e é preocupante. Não é o que se quer de uma polícia profissional”, afirma.

Publicidade

Responsabilização esbarra em ‘respaldo’ e arquivamentos-padrão

Em artigo publicado em 2020 na Revista de Estudios Sociales, ligada a Universidad de los Andes, na Colômbia, um conjunto de pesquisadores de instituições como as universidades federais do Rio e da Bahia, além da Universidade de São Paulo (USP) chamam atenção para o respaldo social e institucional que ações policiais como essas ainda obtêm em várias oportunidades.

O grupo aponta que as perícias técnicas realizadas nesses casos e os depoimentos colhidos nos inquéritos “demonstraram-se protocolares e irrelevantes para a formulação das peças conclusivas” e que o arquivamento era solicitado “com formulações padronizadas, a despeito da existência de elementos que pudessem confrontar a versão dos policiais”.

Analisando a violência letal decorrente de ações policiais registradas em 2012 na cidade de São Paulo, eles concluem haver “elevado grau de apoio de agentes estatais ao uso exacerbado da violência letal e militarizada”. “Tal apoio institucional é uma condição de possibilidade para a naturalização da máxima ‘bandido bom é bandido morto’”, o que é classificado como “pensamento não só antidemocrático como anticivilizatório”.

A pesquisadora Ariadne Natal vê consequências dos casos de letalidade na própria polícia, como a perda de confiança da população. “Se você percebe que aqueles que estão lá para te defender te veem como inimigo, não tem como confiar. Isso é contraproducente, porque se essas comunidades estão de fato permeadas pelo crime organizado, para as polícias seria estratégico ter a comunidade ao seu lado, para fornecer informações. E essas pontes estão sendo dinamitadas”, pondera a pesquisadora.

Esse, contudo, não é o único efeito que recai sobre a força policial. As polícias são muito sensíveis à orientação de comando, ressaltou, “e vínhamos, nos últimos dois anos, num momento de redução da letalidade policial”. “Quando tem um direcionamento para outras formas de resolver os conflitos, isso tem impacto lá na ponta. O que preocupa é a possibilidade de estarmos em um momento de inflexão.”

A Secretaria da Segurança Pública foi questionada sobre o caráter de vingança da operação do Guarujá, como apontado por especialistas, mas não comentou. Perguntada pela reportagem sobre a tendência de alta da letalidade policial observada no primeiro semestre, a pasta também não respondeu.

Em nota, a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo disse ter designado promotores do Tribunal do Júri e do Grupo de Atuação Especial de Segurança Pública para investigar as mortes decorrentes da ação policial no Guarujá. “Sempre que intervenções policiais resultam em óbito, essa medida é tomada, como também nos episódios nos quais há mortes de policiais militares”, diz.

Publicidade

O MP disse ainda que esse grupo monitora os dados relativos à letalidade policial e “vem discutindo, no âmbito da comissão de controle da letalidade que integra na Secretaria da Segurança, medidas com o Executivo que possam reduzir esses índices”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.