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O que uma lei na França pode ensinar a jovens negros brasileiros na luta contra o racismo

Ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira é a principal instigadora da norma que reconhece a escravidão como crime contra a humanidade; documentário francês é exibido no Brasil

Foto do author Gonçalo Junior
Por Gonçalo Junior
Atualização:

A luta por equidade racial na França e no Brasil tem vários pontos em comum, como a busca por mais oportunidades na educação e no mercado de trabalho, maior integração social e reivindicação por maior representatividade no mercado audiovisual.

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É possível fazer essa afirmação a partir do contato com diferentes fontes. Uma delas é o documentário O Panteão das Memórias Negras, do cineasta francês Karim Akadiri Soumaila, que está sendo exibido no Brasil pelas comemorações do Dia da Consciência Negra.

O filme presta uma homenagem à Lei Taubira, promulgada pela ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, em 2001, que reconhece a escravidão como crime contra a humanidade. Christiane trabalhou ainda em defesa dos direitos dos homossexuais, para que o casamento entre pessoas do mesmo sexo na França fosse permitido.

O filme é um rico panorama histórico de quase dois séculos sobre os vínculos legais, culturais e sociais da República Francesa com as colônias francesas a partir dos relatos de historiadores, sociólogos, personalidades políticas, artistas, intelectuais e representantes da sociedade civil.

A ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira Foto: Astrid di Crollalanza

“Quero mostrar que as nossas histórias e as nossas realidades são sensivelmente semelhantes, tendo como ponto de partida a dolorosa história da escravidão”, afirma Karim Akadiri Soumaila. “A luta, na França e no Brasil, permanece a mesma, pela sua integração social e profissional. E isso deve, infelizmente, passar por uma elaboração de leis ou de medidas concretas”, opina.

A trajetória do próprio Soumaila reafirma a proximidade da luta pela equidade no Brasil e na França. Roteirista e diretor de documentários e ficções com quase 30 anos de carreira na televisão francesa, Karim conheceu sua mulher em Paris, vive por aqui há 14 anos e hoje tem uma filha brasileira. Ele trabalhava para emissoras francesas fazendo reportagens especiais sobre a sociedade brasileira e sempre se inquietou com a falta de diversidade em alguns vários setores.

“Quando cheguei ao Brasil em 2009, por exemplo, filmei a São Paulo Fashion Week. E não havia nenhuma modelo negra ou da diversidade nas passarelas. Quando assistia à novela, um bom indicador cultural para um estrangeiro, eu notava poucos protagonistas negros com papéis dignos”, diz.

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O cineasta vê mudanças na sociedade brasileira. “O ponto de partida foi a morte de George Floyd nos EUA e a subsequente mobilização mundial. As multinacionais também seguiram o exemplo, desenvolvendo internamente uma política de inclusão profissional. Vi mudanças notáveis, embora ainda haja grandes esforços a serem feitos, sabendo que 56% da população é afrobrasileira”.

Homenageada no filme, a ex-ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, é uma voz importante mundial na luta contra o racismo. Christiane Taubira Delannon foi deputada da Guiana francesa e Ministra da Justiça da França de maio de 2012 a janeiro 2016, sob a presidência de François Hollande. Em viagem ao Brasil para participar de debates sobre o Mês da Consciência Negra, ela concedeu entrevista exclusiva ao Estadão:

A senhora foi a principal instigadora da lei que reconheceu a escravidão como crime contra a humanidade. Por que a medida foi adotada mais de 150 anos após a abolição da escravidão?

Em 1998, a França comemorou o 150º aniversário da segunda abolição da escravidão nas colônias francesas. Ao não mencionar a primeira abolição, o que inevitavelmente leva a lembrar a restauração da escravidão por Napoleão Bonaparte em 1802. É uma história que abala mitos nacionais. Nesse mesmo ano de 1998, enquanto as autoridades celebravam pomposamente o aniversário do decreto de abolição de 27 de abril de 1848, milhares de pessoas caminhavam pelas ruas de Paris, em silêncio, para assumir e reivindicar pela primeira vez, que eram filhas e filhos de escravos. Fiquei impressionada com esse silêncio, quando há tanto para dizer.

E por esse sofrimento, como se as pessoas não soubessem dizer palavras sobre os fatos, a memória e a profunda dor que tudo isso causa neles. Assim, decidi que, como deputada, no seio das instituições da República, podia agir para que as palavras mais justas e oficiais fossem pronunciadas sobre este crime indescritível.

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Foi assim que redigi esta proposta de lei, apresentada em julho de 1998, debatida no Parlamento Francês a partir de Janeiro de 1999 e que se tornou a Lei Taubira em maio de 2001. Por fim, é uma palavra solene e clara, não sobre a abolição, mas sobre o crime. É a ruptura com o longo período de silêncio e depois de glorificação abolicionista.

Esta lei dá estatuto ao crime e contém disposições sobre o ensino, a comemoração oficial, a pesquisa e a cooperação, a organização de eventos no espaço público. Esta lei é a base da criação da Fundação para a Memória da Escravidão.

Qual foi o impacto da escravidão na situação atual da população negra na França?

A presença das pessoas afrodescendentes, quer tenham nascido em França ou tenham vindo de outro país de nascimento, explica-se em grande parte pela história colonial da França, embora haja pessoas negras na França antes do período das conquistas coloniais. O impacto da escravidão está na persistência do racismo e dos preconceitos, que se traduzem em atos maiores de exclusão (vias educativas, emprego, habitação...), uma maior exposição aos perigos, inclusive institucionais (controles policiais frequentes e, por vezes, assassinos...).

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O cineasta Karim Akadiri Soumaila vive há 13 anos no Brasil Foto: Renato Reyes

Qual é o impacto da lei Taubira na vida dos franceses?

Durante os dois anos de debate parlamentar, a tensão era grande em França contra esta proposta de lei. Aliás, os sucessivos governos levaram mais cinco anos a organizar a cerimônia oficial de 10 de maio criada por essa lei. Desde 2006, esta cerimônia realiza-se no Jardim do Luxemburgo, na presença do presidente da República, que profere um discurso na frente de uma escultura dedicada, com exposição, poemas e orquestra filarmônica. Há cada vez mais escolas, faculdades e liceus que participam do concurso da Flamme de l’Égalité (Chama da Igualdade).

Cada vez mais prefeituras organizam eventos no dia 10 de maio. O mês de maio tornou-se o mês da memória. O ensino da escravidão é desigual, mas o tema está presente. Múltiplas iniciativas militantes, artísticas, culturais, contribuem para dar leitura mais consciente dos preconceitos e mecanismos de exclusão que ainda atuam nas instituições públicas, nas empresas, na mídia...

E a nova geração, confrontada com todos esses mecanismos, é cada vez mais ofensiva para combatê-los e cada vez mais engenhosa em seus métodos. Resta, aos que exercem o poder, conceber políticas públicas.

Qual é o seu maior sonho ou esperança para o futuro da sociedade francesa?

Não se trata de um sonho nem de uma esperança, mas de uma exigência e de um combate. A exigência seria que as instituições públicas parassem de enganar e deturpar os princípios da República e seus princípios de igualdade na cidadania. O combate consiste em agir ou influenciar para que políticas públicas voluntaristas sejam concebidas e aplicadas para uma verdadeira igualdade de todos e todos os cidadãos franceses. Não só perante a lei, mas em relação a todas as oportunidades. A cada um, de acordo com seus talentos e habilidades, não de acordo com sua classe social ou seus privilégios.

A revolta de Santo Domingo, capítulo importante da relação entre a França e as colônias caribenhas Foto: Reprodução

Você escreveu um livro interessante, A escravidão contada à minha filha, sobre a identidade na sociedade guianesa. O que você acha de suas origens guianesas?

Este livro não é centrado na Guiana. A história do tráfico e da escravidão é global e moldou o mundo em que vivemos. Quer se trate do lugar e dos direitos dos povos indígenas; dos direitos dos componentes afrodescendentes e mestiços dos povos das Américas; da presença das línguas europeias nas Américas; das fronteiras (algumas das quais ainda são objeto de contestação) ; da bagagem linguística, cultural, matrimonial, patrimonial que constitui as nossas identidades coletivas... Este livro é sobre isso. E, claro, a minha identidade guianesa tem a marca desta História e contribui para forjar o meu olhar sobre o seguimento que damos a esta História. Isto é, o nosso destino coletivo e comum.

Por que o Brasil e a Guiana estão tão distantes culturalmente? Como podem se aproximar?

Nós nos conhecemos muito mal, mas não estamos tão distantes culturalmente. Pelo menos, não com os Estados de proximidade. É certo que as colonizações portuguesa e francesa deixaram marcas diferentes nas nossas culturas, línguas e modos de vida. Mas as sociedades não estão congeladas. E o que fizemos de nós mesmos, tanto no Brasil quanto na Guiana, prova que muitas coisas nos são comuns (vocabulário, gastronomia, relação com a Floresta Amazônica...). E as sociedades não têm vocação para se assemelharem.

Com base na sua carreira de ministra de Estado, escritora, pensadora e negra, que lições sobre a luta contra o racismo pode partilhar com os jovens brasileiros negros?

O racismo é uma monstruosidade. Uma invenção oportunista elaborada para justificar o sistema mercantil que funcionava sobre o tráfico de pessoas e sua redução à escravidão. Os negreiros, armadores, plantadores sabiam perfeitamente que faziam comércio de humanos. Os poderes públicos, monárquicos, também. Para justificar o seu sistema econômico, muito rentável, que alimentou o enriquecimento e conduziu às revoluções industriais europeias, era necessário justificar - antes, durante e depois do Iluminismo - este tráfico de humanos.

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A única alternativa era parar esse comércio abominável ou justificá-lo negando a humanidade das pessoas que eles capturavam. Fizeram deles “bens móveis” nos seus Códigos negros, e inventaram as teorias sobre a hierarquia das raças. Daí o racismo. Sem validade científica, sem relevância filosófica. Portanto, não há acomodação aceitável. Encorajo e acompanho os jovens que lutam sem concessões e exigem políticas públicas rapidamente eficazes.

Que semelhanças e diferenças você pode identificar entre os desafios enfrentados pela população negra no Brasil e na França?

Os desafios são os mesmos em todo o mundo, pois esta História moldou o mundo inteiro e todos os povos são pluralistas. Os países lidam com isso de forma diferente. A França tem dois níveis de desafio: no seu território europeu e nestes territórios chamados Departamentos ultramarinos. Dois desafios, mas um lema: a igualdade. O Brasil também optou pela igualdade e pela não discriminação em sua Constituição. Claramente, cabe aos governos serem fiéis a esses valores, de acordo com sua organização institucional, e cumprir as promessas constitucionais. E certamente não às “populações negras”.

O que significa visitar o Brasil durante o Mês da Conscientização Negra?

Os “negros” não são uma curiosidade. São cidadãos. O mês da consciência negra diz respeito a todo o Brasil e à sua inteira comunidade nacional. Porque o tráfico e a escravidão pertencem a toda a história do Brasil e moldaram sua identidade coletiva, quer as pessoas estejam conscientes disso ou não. Aliás, no olhar lançado sobre o Brasil pelo resto do mundo, é um país mestiço, crioulo no sentido em que o ouvia o grande filósofo e escritor Édouard Glissant: as culturas em contato produziram o inesperado. Não uma simples adição de línguas, religiões, rituais, expressões artísticas, mas um sincretismo que mistura palavras, práticas, conhecimentos tradicionais e relações com o meio ambiente. E, acima de tudo, um destino solidário.

Serviço

O Panteão das Memórias Negras

Direção: Karim A. Soumaila

France Ô - 2006 / 52 min

Sessão especial: 20/11

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Local: Reserva Cultural - Av. Paulista, 900

Horário: 19h30

Veja outros filmes sobre a presença negra na história

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*Este conteúdo foi feito em parceria com o Instituto Nicho 54, entidade que promove a equidade racial na indústria audiovisual

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