SÃO PAULO - Uma praça da região central de Medellín traz duas grandes esculturas de pássaro: uma está intacta, a outra foi parcialmente destruída em um ataque a bomba que deixou 29 mortos em 1995. Lado a lado, as peças de Fernando Botero hoje simbolizam a memória do que já foi a cidade mais perigosa do mundo e a renovação vivida nas décadas seguintes.
Esse processo de mudança vem acompanhado de grandes projetos urbanos, focados especialmente nos bairros de maiores índices de violência. Um dos responsáveis pelo planejamento e gestão desses projetos é o urbanista Carlos Mario Rodríguez, que trabalhou na Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano de Medellín de 2004 a 2010 e foi “assessor conceitual” do livro Medellín, Guia de la Transformación Ciudadana. 2004-2011.
Também professor universitário, o colombiano saiu do setor público há nove anos e, hoje, é consultor de projetos arquitetônicos e urbanísticos. Ele falou com o Estado por telefone desde Recife, cidade que se inspirou em Medellín para criar projetos em comunidades de baixa renda.
Nesta quarta-feira, 18, o colombiano participa da palestra Urbanismo social em Medellín: 20 anos de transformação e inovação urbana, seguida de debate com secretários municipais do Recife e de São Paulo, no Insper. As inscrições estão encerradas.
Confira a entrevista com o Estado abaixo:
O que é o “urbanismo social”, que alguns associam aos projetos realizados em Medellín nas últimas décadas?
“Urbanismo social” é uma redundância. Falar em urbanismo é falar de sociedade. Quando falamos de urbanismo social, falamos de operações que são feitas com as pessoas no território, trabalhando com as pessoas. É uma construção coletiva, que pode ser uma biblioteca, um colégio, uma praça, um jardim, uma rua, construídos da perspectiva da população.
Medellín se tornou um exemplo internacional de urbanismo nas últimas décadas. Que mudanças levaram a isso?
É um exercício muito importante em Medellín: de dispor de todas as ferramentas para um território de forma simultânea (chamados de Projetos Urbanos Integrais), a partir da saúde, da segurança, da educação. Não é um problema só do edifício, da rua, é necessário que arquitetura e urbanismo conversem. Isso se faz através de uma metodologia de quatro componentes: institucional, que envolve todos os elementos de governabilidade de um território; desenvolvimento de programas de fomentos, para que as pessoas tenham, de alguma maneira, capacidade de subsistir no meio de um território, com condições melhores; o terceiro é o trabalho social que se converte em exercício de corresponsabilidade; finalmente, o desenvolvimento físico e social, com o urbanismo e a arquitetura. É um sistema muito importante, de trabalhar de maneira coletiva. Cada um tem um papel para assumir. O técnico trabalha no componente técnico, os cidadãos trabalham de sua perspectiva, cada um de um jeito.
Por que é tão necessária essa participação da população?
É quem habita o território, quem reconhece os problemas. O território se costura através dos olhos da comunidade, que participa do processo desde o início e também na implantação, fazendo projetos de melhoramento. É muito importante porque, ao final, isso gera empoderamento das pessoas, que cuidam mais também.
Historicamente, o urbanismo aplicado por governos costuma ouvir a população ou é mais de cima para baixo?
Quase sempre a tradição do urbanismo é de ser o grande planejador de cidades, de cima para baixo, se precisa desconstruir essas linhas do território com as pessoas. O olhar hoje é para a cidade já construída, não para uma cidade teórica, como foi Brasília (erguida em uma área não urbanizada, sem construções). O urbanismo precisa trabalhar nos bairros, que já estão construídos e em processo de uma ocupação que é muito aleatória.
Esses modelos de Medellín são replicáveis?
Creio que o mais valioso é entender a estratégia, a metodologia. Não se pode replicar de maneira literal, cada território tem condições sociais e culturais diferentes. O importante são os quatro elementos, com uma decisão do Estado e um processo de comunicação muito forte. É quase um projeto de acupuntura urbana.
Os projetos de Medellín chamam a atenção pela arquitetura contemporânea, com projetos premiados. Por que investir nisso?
A grande maioria foi escolhida a partir de concursos públicos, o que democratiza a intervenção no território. São projetos que buscam a participação coletiva de arquitetos na construção da cidade. A arquitetura de qualidade de alguma maneira ajuda na autoestima desses bairros, da mesma maneira do que a arquitetura dos bairros mais ricos.
As mudanças de Medellín nas últimas décadas tiveram forte investimento público, até dentro de uma perspectiva de mudança da imagem da cidade. Como transpor isso para outras capitais latino-americanas, que muitas vezes não têm os mesmos recursos?
Não creio que seja uma questão de recursos, mas de uma decisão política, que é muito importante. De colocar todas as ferramentas em um território definido, isso gera resultados, como a redução da violência. O problema não é de recursos, é de articulação de ações públicas. Você tem como combinar a iluminação de uma cidade e coordenar as ações, em vez de serem dispersas com um pouco em um bairro. Para mim, não é um problema econômico, mas uma perspectiva de se articular.
No Brasil, muitos prefeitos costumam defender parcerias público-privadas para projetos urbanísticos. Essa é a melhor solução?
A responsabilidade é dos órgãos públicos. Os serviços gerais de uma cidade se resolvem no setor público. Uma aliança público-privada pode resolver outras coisas, como concessões que dão recursos. Cada um tem suas próprias responsabilidades.
O senhor coloca o urbanismo como uma das demandas públicas prioritárias. Qual é o impacto disso na vida da população?
Ele é fundamental para melhorar as condições de qualidade de vida. O espaço público é como se constrói a sociedade. Onde não tem espaços públicos, não se constrói sociedade. É importante entender dessa perspectiva, ele é essencial para o público.
Os projetos urbanos de Medellín têm atraído também a atenção de turistas, especialmente para os parques, as praças e a Comuna 13 (favela que foi pacificada e que se tornou atração de visitas guiadas). Isso foi pensado desde o início ou foi consequência?
Essas coisas vieram posteriormente. Não se pode converter uma cidade simplesmente de forma epidérmica, sem entender o contexto fundamental. Senão, estamos caindo em um turismo que é de mentira. É importante que Medellín não se entenda como uma cenografia, o importante é mover a cidade. Medellín não é um problema epidérmico, é uma cidade construída por meio da dor, é construir dessa dor uma nova ideia do que é uma qualidade de vida para os seus. A cidade, de uma forma ou outra, se transformou em uma cidade diferente, capaz de passar pela esperança, isso impacta muito no comportamento das pessoas. É uma estratégia fundamental mudar essas zonas por seus processos de ocupação. É possível recuperar bairros de violência alta, mudar problemas de violência, e não pela repressão, mas mudando o cenário de oportunidades.
Em Medellín, dois projetos que se tornaram modelos são as linhas de transporte por teleférico e a instalação de escadas rolantes nas favelas. Iniciativas de mobilidade como essas são importantes dentro de um cenário de mudança urbanísticas?
São fundamentais. Se há algo que se tem que investir em uma cidade, sobretudo latina, é no transporte público com qualidade, para que todos se movimentem pela cidade com as mesmas condições, com a mobilidade entendida como um instrumento de equidade. Em Medellín, hoje, há a oportunidade de conectar a cidade a um lugar aonde ninguém ia, que era um lugar de violência. Isso constrói dignidade.
O senhor conhece São Paulo? Qual é a sua percepção urbanística da cidade?
Sim, é uma cidade que se expande no horizonte, que se alarga por todo o território, como Caracas, Bogotá e Cidade do México, que segue crescendo de maneira horizontal e não trabalha sobre cidades compactas. Acaba sendo uma cidade muito custosa, porque necessita de transportes públicos muito complexos, necessita de serviços públicos que atendam à periferia. É uma cidade absolutamente insustentável. São Paulo tem muita diferença entre a riqueza e a pobreza como uma ferramenta territorial.
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