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‘Olavo de Carvalho tinha razão’, diz Francisco Bosco sobre a esquerda nas universidades

Ensaísta e integrante do ‘Papo de Segunda’ lança ‘Meia Palavra Basta’, com aforismos sobre intolerância, relacionamentos, futebol e religião, entre outros assuntos, e fala, nesta entrevista, sobre elitização do debate intelectual, ‘intelectofobia’, fake news e monogamia

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Por Gabriel Zorzetto
Atualização:
Foto: Pedro Kirilos/Estadão
Entrevista comFrancisco BoscoFilósofo e escritor

Francisco Bosco, 47, é um intelectual que tem o dom de se comunicar com as massas, qualidade cristalizada nos seus vários livros publicados e também nas suas participações no programa Papo de Segunda, do canal GNT, o qual ele integra desde 2018 e cuja temporada atual apresentou um novo elenco: além de Bosco, estão Russo Passapusso, Eduardo Sterblitch e o apresentador João Vicente de Castro.

Filho do cantor João Bosco e da artista plástica Angela Bosco e ensaísta com doutorado em literatura, Francisco já foi presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) entre 2015 e 2016, mas entregou o cargo depois de Michel Temer assumir a presidência da República de forma interina.

Seus livros mais recentes, A Vítima Tem Sempre Razão? (2017) e O Diálogo Possível (2022), tinham proporcionado debates mais canalizados à esfera política. Agora, no novo trabalho Meia Palavra Basta, o autor carioca fornece uma coleção descontraída de aforismos sobre os mais variados assuntos do cotidiano como relacionamentos, sexo, intolerância, futebol, religião, paternidade, entre outros.

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Ao Estadão, por telefone, Bosco expandiu alguns dos temas que inspiram esses textos curtos que, segundo ele, são “profundidades sem aprofundamento” reunidas em um livro sem “nenhuma utilidade”, mas cuja legitimidade é um “prazer desinteressado” do leitor.

Você se define como intelectual. Não acha que a maioria das pessoas pode ter um ranço dessa palavra e associar a um certo tipo de arrogância?

Eu me defino como intelectual público, diferente do intelectual acadêmico, que é aquele cuja produção costuma ficar circunscrita aos limites da universidade. O intelectual público é aquele que, tendo tido estudos formais ou não, tem uma ação discursiva que vai para além da universidade e adentra a cultura. Você fez uma observação muito pertinente e que deve obrigar os intelectuais a repensarem o seu lugar na contemporaneidade. No fundo, a universidade no Brasil está sob suspeita, por boas e más razões. As boas razões dizem respeito ao fato de que, durante as últimas décadas, a universidade brasileira concentrou excessivamente uma perspectiva ideológica e política de esquerda. Eu estudo, por exemplo, um autor de direita que fez uma verificação nos bancos do CNPq e mostrou que alguns dos autores conservadores mais importantes do mundo praticamente não são mencionados nas teses de ciências humanas do Brasil. A pessoa que talvez primeiro tenha falado sobre isso, e nem sempre da melhor maneira, foi o Olavo de Carvalho. Embora me custe dizer essa frase, eu a digo frequentemente, sem problema algum: Olavo tinha razão nesse ponto. Então, a palavra ‘intelectual’ hoje é vista sob suspeita de elitismo e concentração ideológica. Esse é o lado correto. O lado incorreto é que, normalmente, os grupos políticos ‘intelectofóbicos’ não trabalham com argumentos e usam fake news. Então, a alternativa à elitização do debate intelectual não pode ser a ignorância e a má-fé. A alternativa tem que ser a pluralidade ideológica.

No livro, você escreve: ‘Ninguém é moralmente obrigado a ser herói. Ninguém deve ser moralmente condenado por não ser herói’ – tragédias como a do RS acabam despertando julgamentos desse tipo?

Esse aforismo vem de leituras que eu faço no campo da filosofia da justiça. Então, essa figura do herói para o jargão na teoria da justiça seria o ato supererrogatório, que é um ato que vai para além do que seria o dever do sujeito. O dever do sujeito é um dever de agir com justiça, seja perante a lei, seja perante certa expectativa moral. A figura do herói é a figura que, além de fazer isso, sacrifica a sua própria vida ou reputação, em nome do bem comum. Então, o herói é aquele que faz mais do que a obrigação. O que estamos vendo no RS, sem dúvida alguma, é um conjunto admirável de heróis ou atos supererrogatórios, se você quiser. As pessoas são moralmente obrigadas a serem heróis? Não são, mas elas ganharão a recompensa do reconhecimento coletivo pelo que estão fazendo.

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Eduardo Sterblitch, Francisco Bosco, Russo Passapusso e João Vicente formam o novo elenco do 'Papo de Segunda' Foto: Guto Costa/Divulgação

‘O grande problema da militância contemporânea é o fato de ela ser uma militância digital’ – acha que as redes sociais desvirtuam os ideais de um militante?

O debate público é justamente o lugar onde pessoas de direita, de esquerda, cristãos, candomblecistas, ateus, etc, vão debater os problemas sociais. E as pessoas têm que participar disso de boa fé. O que aconteceu desde a emergência dos algoritmos nas redes sociais é que as pessoas estão organizadas largamente em grupos identitários. Então, de novo, na tragédia do RS o que você vê do ponto de vista das disputas nas redes? Há um grupo de direita que procura criticar o Estado, não importa se com argumentos verdadeiros ou com fake news, enquanto a esquerda fica tentando também disputar o episódio e puxar a sardinha para o seu lado. Isso está degradando o debate público.

Sobre brigas de torcida, você diz ‘ninguém briga pelo Flamengo, todos brigam por seus eus’ – isso vale também para a política, certo? O Estado deveria intervir?

Esse aforismo não é sobre futebol, ele é sobre a lógica de grupo. O princípio das torcidas organizadas é rigorosamente o mesmo princípio das lógicas de grupo político-ideológicas nas redes sociais. É a mesma coisa. O Estado deve intervir? Eu acho que sim. Nós estamos atrasados no Brasil no sentido de uma legislação que seja capaz de tornar os algoritmos mais transparentes e dotá-los de maior responsabilidade. Essa legislação é muito sensível, porque não é fácil fazer isso sem violar princípios de liberdade individual. Para termos esse debate, precisaríamos de um congresso e de uma sociedade despolarizada. É justamente o que não temos.

‘Os intelectuais traíam seu compromisso com a interpretação honesta da realidade por se engajarem em projetos políticos e serem bafejados com as benesses do poder do Estado’ – teria esse trecho do livro elementos autobiográficos, haja vista que você teve um cargo na Funarte?

Mesmo antes era das redes sociais, a maior tentação do intelectual sempre foi o poder do Estado. No momento em que um intelectual vai para um governo, ele deixa de ser um intelectual, porque ele perde a capacidade de criticar o governo. Eu fui um crítico do PT, mas apesar disso fui convidado para o segundo governo Dilma. E enquanto participei do governo considero que as minhas funções como intelectual público estiveram comprometidas. Isso não significa que o intelectual público não deva fazer parte de um governo. Tenho muito orgulho de ter servido durante esse, infelizmente, breve período.

Escritor e filósofo Francisco Bosco, em sua casa zona sul do Rio de Janeiro. Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Por que a monogamia é tão exigida, mas ao mesmo tempo tão descumprida na sociedade atual?

A forma do casamento, tal como conhecemos hoje, é uma forma histórica que basicamente consiste na tentativa de conciliar os seguintes fatores: exclusividade sexual, duração no tempo e constituição de família. Então, por que a monogamia é difícil? Porque o casamento tende a esvaziar o desejo sexual. Ocorre que todos nós temos os nossos narcisismos. Quando você ama alguém, é muito importante ter o reconhecimento do outro e no casamento isso ocupa grande parte da sua autoestima. E quando essa pessoa com quem você está tem desejo sexual por outra pessoa, nos sentimos eclipsados. É como se aquele Sol que nos ilumina, que ilumina o nosso narcisismo, entre esse Sol e nós, tivesse interposto um outro satélite, que nos faz sombra. Então, a monogamia, tem essa função de proteger o narcisismo dos envolvidos. E por que essa contradição não pode ser explicitada? Porque no momento em que você tem uma conversa com o seu parceiro sobre não serem mais monogâmicos, abre a janela para uma ferida narcísica que dá medo nas pessoas.

A maior parte das pessoas prefere fazer um acordo monogâmico e, como é na maioria dos casos, trair sem deixar isso claro. Isso é hipocrisia.

Francisco Bosco

‘O amor gosta de se relacionar com o lado conhecido do outro; o sexo, com o desconhecido’ – por que o lado misterioso é mais atraente?

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Todas as evidências apontam para que o amor se nutre da intimidade, daquilo que se conhece no outro. O amor tenta transformar tudo em doméstico, no sentido do domo, da casa. Pensa em uma espécie de iconografia diária do amor: dormir de conchinha, cafezinho junto, assistir série. O desejo não se estimula por essas cenas. O desejo é atraído pelo que lhe falta. Por isso que o desejo humano é inesgotável.

Você escreve: ‘A segunda coisa mais superestimada do mundo é o sexo’. Por quê?

Esse livro joga com diferentes tradições desse gênero literário, o aforismo. Entre essas tradições tem aquela do humor, do chiste, e que no Brasil tem um representante enorme: o Millôr Fernandes. Nesses aforismos de humor, a forma é mais importante que a verdade. Esse aforismo tem uma primeira frase, que na verdade só se vai resolver na sequência: ‘A segunda coisa mais superestimada do mundo é o sexo, a primeira é o ménage’. Eu não acho que o sexo seja superestimado. O ménage sim, sem dúvida. Tem alguém que já disse que ninguém goza em suruba. É verdade. Na suruba, o ambiente é que é interessante, a coisa de uma transgressão. Isso é que dá desejo. Mas fora isso, ela é cheia de problemas, porque tem uma competição narcísica acontecendo. No ménage, a forma com três pessoas é a forma narcísica mais difícil, porque a tendência é alguém se sentir excluído.

Capa do livro 'Meia Palavra Basta' Foto: Editora Record/Divulgação

6 máximas de Francisco Bosco

  • “O que é um escritor? É quem enxerga o escuro com as luzes acesas.”
  • “Boa parte dos lacanianos não passaria numa daquelas singelas provas escolares cujo enunciado pede: ‘Explique com suas próprias palavras’.”
  • “A monogamia ocupa um lugar simbólico análogo ao das drogas na nossa sociedade: uma mistura de tabu e hipocrisia. As drogas, muita gente nega, mas quase todo mundo usa; a monogamia, muita gente exige, mas quase todo mundo descumpre.”
  • “Sublinhar livros tem ao menos três sentidos. O primeiro é de natureza pragmática: consolidar trechos importantes na memória. Os outros são de natureza psicológica: marcar o território, como um cachorro urina num poste; e dar a uma atividade em princípio improdutiva o salvo-conduto da produtividade (’eu me esforcei’, ‘eu trabalhei’).”
  • “Brigar por futebol parece a princípio a coisa mais estúpida do mundo: o time pelo qual você torce nada diz a seu respeito, defendê-lo não significa defender posições morais, políticas, culturais. Brigar por futebol seria então uma discórdia cheia de som e fúria significando nada – não fosse a notável e inglória capacidade que temos de transformar qualquer identificação em uma parte inegociável do nosso eu. Trocando em miúdos: ninguém briga pelo Flamengo, todos brigam por seus eus.”
  • “Situação clássica da irritação parental: quando os filhos choram ‘por bobagem’. E entretanto isso que é bobagem para nós não o é para eles, uma vez que em suas vidas não há ainda contas a pagar, problemas políticos a decifrar, filhos por educar. Logo, consequência clássica da punição parental: a culpa – dessa vez, justificada.”

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Meia Palavra Basta

  • Autor: Francisco Bosco
  • Editora: Record (128 páginas; R$46)
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