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Por que cientistas acham quase impossível congelar e descongelar corpos inteiros?

Pesquisadores americanos avançam em técnica de criobiologia em camundongos, mas processo é complexo; possiblidade poderia revolucionar transplantes

Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
Atualização:

Pessoas que são congeladas e voltam à vida fazem parte de enredos hollywoodianos. Se nas telas a técnica parece próxima, o caminho científico para isso é bem mais complexo. Em junho, porém, um avanço foi celebrado por cientistas americanos: um experimento pioneiro que teve êxito ao congelar e descongelar órgãos de camundongos, para depois usá-los em um transplante.

Avanços nas técnicas de criopreservação, área que estuda a possibilidade de trazer sistemas e órgãos à vida após congelamento, são difíceis, mas podem revolucionar os transplantes no futuro. O objetivo é impedir a rápida deterioração de órgãos doados – barreira que faz desses procedimentos uma corrida contra o tempo.

Uso de órgãos congelados poderia revolucionar área de transplantes, mas caminho envolve superar barreiras técnicas Foto: Christophe Archambault/AFP

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Um banco de tecidos e órgãos congelados seria capaz de reduzir desigualdades de acesso impostas por restrições geográficas e melhorar o resultado da cirurgia, com maior compatibilidade entre doador e receptor, além da sobrevida do enxerto.

Os pesquisadores da Universidade de Minnesota (EUA) reportaram na revista científica Nature Communications, no mês passado, o transplantes de rins “congelados” (criopreservação) em cinco camundongos - um grupo ainda pequeno. Com a técnica inovadora e experimental, eles armazenaram os órgãos por até 100 dias.

Embora a pesquisa tenha acompanhado os camundongos por apenas 30 dias (quando foram sacrificados para análises mais detalhadas), eles estimam que “os rins nanoaquecidos terão resultados de longo prazo semelhantes aos observados no transplante padrão de doadores falecidos”.

A proposta parecia “ficção científica”, admite Erik Finger, professor de Cirurgia e um dos autores do estudo. “Conceitualmente, pensamos que funcionaria, mas foi uma surpresa quando aconteceu”, disse ao Estadão.

A virada de chave foi possível graças à técnica inédita usada na hora de descongelar o órgão. Nela, nanopartículas de óxido de ferro, junto com uma solução crioprotetora, são injetadas e se espalham lentamente por todo o órgão, como minúsculos aquecedores. Com ondas eletromagnéticas, são ativadas e aquecem rapidamente a estrutura por dentro, e não só na superfície, evitando a cristalização, que poderia resultar em lesões.

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O trabalho uniu cirurgiões e engenheiros. Os primeiros focaram nos aspectos biológicos, como os modelos de transplante. Já o outro grupo focou em aspectos físicos da pesquisa, como o nanoaquecimento e a bobina indutora.

Tanto ao resfriar quanto ao aquecer estruturas dos órgãos, pode haver a criação de gelo (cristalização), o que pode causar lesões (rasgar as células). Para evitar isso, usa-se uma técnica chamada de vitrificação. Nela, são empregadas altas concentrações de uma mistura, o agente crioprotetor. O problema é que a toxicidade das substâncias que compõe essa solução também pode lesionar o sistema.

No experimento, os cientistas fizeram tanto transplantes de órgãos que foram vitrificados, quanto enxertos de rins recém-extraídos. Também realizaram o procedimento com um rim refrigerado a 4 °C por 60 horas, tempo escolhido com base em estudos que mostraram que a viabilidade e a função do enxerto caem depois de 48 horas a 72 horas de armazenamento. A última cirurgia não funcionou e, falhando em produzir urina, o camundongo foi sacrificado.

Os demais animais sobreviveram até o fim do estudo. Os roedores que receberam rins recém-extraídos apresentaram resultados melhores. Enquanto eles levaram poucos minutos para produzir urina, os órgãos nanoaquecidos demoraram de 40 a 45 minutos.

Nas duas primeiras semanas pós-cirurgia, os animais que receberam rins aquecidos também experimentaram “mais disfunção metabólica” – não executaram tão bem a função de filtrar o sangue quanto os que foram receptores de um órgão não congelado. Mas essa dificuldade foi superada na 3ª semana.

“Órgãos que passam mais tempo armazenados para transporte ou vêm de doadores mais velhos, por exemplo, podem levar dias, semanas ou até meses para realmente se recuperar disso. Portanto, se encaixa no espectro do que vemos e aceitamos clinicamente”, afirma Finger.

Por que é tão difícil?

A criopreservação (isto é, o congelamento) intencional remonta aos anos 1950, quando cientistas preservavam esperma de aves usando o glicerol como agente crioprotetor – capaz de blindar células no processo de resfriamento. Mas, se falamos de uma técnica com mais de 70 anos, por que só agora um transplante com um órgão que foi congelado?

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Cientistas descobriram que há formação de gelo (a cristalização) no resfriamento e no aquecimento, principalmente em sistemas maiores. Esses cristais de gelo podem “estraçalhar” células e causar lesões que inutilizam o órgão.

Superar essa barreira moveu cientistas nas últimas sete décadas. Na vitrificação, maiores concentrações do agente crioprotetor são aplicadas, e a velocidade de resfriamento é mais rápida. Assim, é possível deixar as estruturas em um estado vítreo (de vidro), evitando a cristalização. Com esse método, hoje, dá para congelar e trazer “de volta à vida” um embrião humano, a maior estrutura viva que suporta o processo, conforme a revista americana Science.

Mas isso vai funcionar em humanos?

Segundo os cientistas americanos, muitas perguntas precisam ser respondidas antes de usar a técnica em humanos. O próximo passo está claro: testes em animais maiores, como porcos. “Ambos acreditamos que isso pode funcionar, mas agora temos de mostrar que funciona, e vai levar um tempo para mostrar isso em modelos animais maiores”, diz John Bischof, diretor da Instituto de Engenharia em Medicina da Universidade de Minnesota, ao Estadão.

“Ainda está na fase experimental, mas estou convencido de que será extrapolado para o uso clínico (em humanos)”, avalia o médico brasileiro Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado na América Latina.

“É uma novidade muito importante. Ainda é preciso testá-la em muitas mais espécies, e, às vezes, o que funciona bem no rato pode não funcionar em humanos. Mas já é um primeiro passo”, diz Valter Duro Garcia, responsável pelos transplantes renais na Santa Casa de Porto Alegre e editor do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT) da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).

Na visão de Garcia, quando (e se) a técnica for replicável para humanos, seria possível aumentar a taxa de aproveitamento de órgãos e tecidos de 10% a 20% no Brasil. Ele lembra que, no início da pandemia, com menos voos circulando, muitos órgãos foram perdidos.

E, algum dia, seria possível trazer um corpo inteiro de volta? “Não tenho conhecimento de abordagem universal que possa trazer um corpo inteiro de volta, e sou um pouco cético. Uma das razões é que temos muita dificuldade em descobrir como trazer (apenas) um órgão de volta à vida”, afirma Bischof.

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