A luta do escorpião e da borboleta

Que artimanhas sacar de última hora para envenenar a candidatura do rival e, eventualmente, destruí-la?

PUBLICIDADE

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Uma é sagitário; a outra, escorpião. Poderosas, ambiciosas, arrogantes, têm a mesma idade (60 anos) e querem chegar à presidência da República. Quando jovens, peitaram o establishment, cada uma do jeito que dava e a correlação de forças permitia. Confrontada com uma ditadura militar, a sagitariana optou pela luta armada e acabou presa e torturada. Vivendo numa democracia, mas presidida por Richard Nixon, a escorpiana limitou-se a participar de passeatas, assinar manifestos e fazer discursos contra a guerra no Vietnã e a favor do feminismo. Esta virou primeira-dama e senadora; a outra, alta burocrata estatal e, finalmente, ministra e chefe da Casa Civil. No início da semana, ambas passaram por uma prova de fogo. Uma perdeu, outra ganhou. Para azar da senadora Hillary Clinton, seu adversário se chama Barack Hussein Obama e não José Agripino Maia. Que ninguém se surpreenda se a sagitariana Dilma Rousseff eleger-se presidente antes de Hillary. Ou melhor, se Dilma chegar à presidência e Hillary encerrar sua carreira política no Senado. A performance de Dilma na Comissão de Infra-Estrutura do Senado, na quarta-feira, foi um passeio maior que o aplicado no Flamengo pelo América do México, no Maracanã. Beneficiada por um gol contra do adversário logo aos primeiros minutos, a Dama de Ferro do governo Lula tomou conta do jogo, falando apenas do que queria (jogou a celeuma do dossiê para escanteio e discorreu durante uma hora sobre o PAC), "passando a imagem de uma gerente com o controle de toda a situação do País", na avaliação de colunista Miriam Leitão, que, ao contrário de Agripino Maia, não é cabo eleitoral da ministra. Involuntário, mas cabo eleitoral. Só um cabo eleitoral faria o que o senador potiguar fez, ao tentar caracterizar a "mãe do PAC" como mentirosa contumaz por conta de uma ou mais mentiras por ela ditas aos que a torturam nos porões da ditadura militar. A mentira não tem apenas pernas curtas, mas duas faces distintas. A que contamos aos nossos torturadores é sempre benigna, corajosa e, mesmo, heróica se seu propósito for salvar a vida de um companheiro, como foi o caso da que Agripino Maia trouxe à baila, com a tosca empáfia de um Maquiavel do agreste. Não sei se por esquecimento (no sentido que os alemães dão à palavra Treppenwitz: aquela resposta oportuna que só nos ocorre tarde demais), estratégia ou pena, mas a ministra perdeu a chance de arrematar seu olé no senador com uma observação embaraçosa e uma pergunta viperina. A observação: "Enquanto eu era torturada, o senhor servia à ditadura." (Confere: Agripino Maia chegou a ser prefeito biônico de Natal e sempre militou nos partidos situacionistas.) A pergunta: "Se o senhor traiu o governo militar, aderindo à Frente Liberal que elegeria Tancredo Neves presidente, por que não estaria traindo agora a oposição, me fazendo uma pergunta que o deixa tão mal perante seus pares e o País?" Com uma oposição tão inábil, inepta, incompetente, Dilma Rousseff pode se transformar, em breve, numa candidata palatável até para quem não faz parte do núcleo do poder. Ela, confesso, me dá medo - e não só a mim e a outros também não deformados por preconceitos sexistas. Competência não tem sexo. Honestidade tampouco. Mas húbris, mesmo sem derivar de úbere, não é um defeito exclusivamente masculino. Zélia Cardoso de Mello está aí e não me deixa mentir. Minto; não está mais aí, não - graças a Deus. Mas Hillary Clinton está. Ou melhor, continua. Ninguém mais agüenta as primárias democratas. A comentarista política Gail Collins comparou-as, em saturação, às olimpíadas da China. Se vivesse no Brasil, acrescentaria o caso Isabella. Hillary não desiste. No dia seguinte à acachapante derrota na Carolina do Norte e à raquítica vitória em Indiana, reuniu sua equipe e ordenou: "Pé no acelerador, pessoal, rumo à Casa Branca". Já a chamaram de muita coisa (Bruxa, Lady Macbeth, Exterminadora do Futuro, Scarlett O?Hara, Tonya Harding, Lorena Bobbitt, Diabo de Saias), mas de autista (ou Rain Woman), até agora não. Existe uma diferença entre persistência e teimosia, que só ela e Bill Clinton parecem (ou fingem) não entender. Como diria o português da piada: "Só abatendo-a a tiros." Cheios de dedos, os democratas, pessedistas enrustidos, permanecem no muro, junto com os superdelegados capazes de decidir a parada, todos receosos do que os Clintons possam fazer caso Howard Dean obrigue Hillary a jogar a toalha. Não que eles sejam, atualmente, poderosíssimos, mas porque são capazes de tudo para conquistar ou manter-se no poder. Lá, como cá, a oposição não merece confiança - com as honrosas exceções de praxe. E uma delas é, justamente, o senador Barack Obama, o virtual candidato democrata à sucessão de Bush. Obama é leonino, mas parece mais um bicho que não consta do zodíaco: a borboleta. Teoricamente, não é páreo para um escorpião. La Fontaine daria um jeito nisso. O eleitorado jovem, urbano, letrado, independente, e os negros darão. "Hillary tem apenas 2% de chance de sair candidata e 20% de chance de eleger mais um republicano, se insistir em permanecer na disputa", comentou Nicholas D. Kristof, colunista do New York Times, depois das primárias de terça-feira passada. Não sem deixar de lembrar que em nove das dez últimas eleições presidenciais, o escolhido na frente levou a melhor. Já faz dois meses que John McCain saiu candidato pelos republicanos. Tempus fugit. Vários caciques democratas asseguram que Obama (capa da próxima edição da revista Time, como vencedor da disputa) terá sua vitória proclamada daqui a nove dias, nas primárias de Kentucky e Oregon. Aliados de Hillary garantem que os superdelegados do partido se manterão calados até pelo menos 3 de junho, após as duas primárias finais. Para que mais duas semanas? Para jogar mais lama na reputação de Obama, enfraquecê-lo e facilitar a vitória de McCain, possibilitando o retorno triunfal de Hillary nas eleições de 2012? Ou para ter tempo de limpar a barra suja de Hillary e torná-la aceitável como vice de Obama? A dobradinha, há muito especulada, já fez algum sentido, mas o comportamento hostil de Hillary nos últimos meses praticamente a inviabilizou. Superados em seguidas primárias, os Clinton perderam a compostura, apelando para lorotas heroicizantes (Hillary jamais escapou de balas de franco-atiradores na Bósnia, nem afiançou a paz na Irlanda do Norte), artimanhas de fundo racista (até escurecer a pele de Obama num anúnciojá fizeram), e insistindo, além da conta, com a fátua justificativa de que o senador por Illinois não tem experiência administrativa. George Stephanopoulos, um dos cérebros do primeiro governo Bill Clinton e atual analista político da rede ABC, revelou ao âncora do telenoticioso World News, da ABC, Charles Gibson, que Hillary só continuou na disputa para negociar a vice-presidência e que espera um momento vitorioso para anunciar sua desistência. Como deve vencer na Virgínia Ocidental, terça-feira próxima pode ser o seu Dia D. Ou não. Nunca se sabe que surpresas nos reserva um escorpião.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.