Justiça suspende multa de pedágio free flow: onde modelo será usado e o que deve mudar?

Rio-Santos usa modelo experimentalmente, mas concessionária é alvo de ação após queixas de motoristas sobre cobrança indevida; novos editais preveem multas a operadoras em caso de falhas

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Por José Maria Tomazela
Atualização:

A decisão da Justiça Federal de suspender as multas por evasão de pedágio no free flow, sistema de cobrança automática, em um trecho da Rodovia Rio-Santos, reacendeu a discussão sobre a adoção do modelo no Brasil. A preocupação do setor e do poder público é evitar novas contestações judiciais que inviabilizem a expansão do sistema, previsto em várias concessões do sistema rodoviário pelo País, a exemplo dos planos para a Mogi-Bertioga, Raposo Tavares e o Rodoanel Norte.

Experiência de pedágio com pagamento automático na Rio-Santos tem sido observada para ajustes Foto: Reprodução/CCR-RioSP

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A CCR RioSP, principal alvo do processo, disse que a medida judicial não desobriga os usuários da rodovia de pagarem a tarifa de pedágio ao passarem pelo trecho. A empresa diz ainda investir na melhoria do sistema.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) afirma que a tecnologia está em fase experimental e passará por ajustes até ser expandida para toda a malha viária sob concessão no País. Já a estatal federal Infra S.A. abriu consulta e avalia sugestões para aprimorar, entre outros pontos, o sistema de cobrança e pagamento do free flow.

No Rio Grande do Sul, um aditivo ao contrato prevê multa à concessionária de R$ 950 reais a cada notificação errada que enviar ao usuário. Essa penalização também está prevista para os novos contratos de concessão em São Paulo.

O sistema free flow, utilizado há anos nos Estados Unidos e em países da Europa e da Ásia, já funciona no Chile chegou recentemente ao Brasil, onde ainda está em fase de avaliação. Além do Rio, o pedágio sem cancelas opera em rodovias do Rio Grande do Sul e será adotado em breve São Paulo e Minas Gerais. Goiás e Espírito Santo têm estudos para implementar esse modelo..

No free flow, os veículos passam por pórticos sem reduzir a velocidade e sensores e câmeras registram as placas, emitindo a cobrança da tarifa. Se o dono do veículo não pagar em 15 dias, recebe multa de R$ 195,23 por evasão do pedágio, infração grave prevista no Código de Trânsito Brasileiro. O motorista recebe ainda cinco pontos na Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

O pedágio sem cancelas é uma das principais inovações dos novos modelos de concessões rodoviárias. No Brasil, o sistema foi autorizado pela Lei 14.157, de 2021. Os pórticos da CCR RioSP foram os primeiros a entrar em operação no País, em um trecho da rodovia Rio-Santos (BR-116). Assim que a cobrança foi iniciada, após um período de testes, começaram também queixas de usuários que se diziam prejudicados. As reclamações foram parar na Justiça.

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Motoristas fazem queixas de multas indevidas

A ação foi movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelas defensorias públicas da União e do Estado do Rio, sob a alegação de que a concessionária não criou os mecanismos necessários para facilitar o pagamento do pedágio durante o período experimental.

“O consumidor não tem apenas o dever de pagar por um serviço a ele prestado, tem também o direito de pagar de modo fácil, sem esforço desnecessário e sem perda de tempo”, diz a petição apresentada ao juízo.

De 30 de janeiro a 30 de março de 2023, o sistema funcionou sem gerar multas, que foram aplicadas a partir de 31 de março. Segundo o MPF, centenas de reclamações oficializadas por ações judiciais ou registros em canais de atendimento apontam multas aplicadas a veículos que usam tag (adesivo no parabrisa para pagamento automático) e pagaram o pedágio regularmente.

Também há casos de multas em duplicidade, aplicadas em número maior que os registros de passagens e, sobretudo, falta de comunicação e sinalização sobre as formas de pagamento.

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A ação civil pública foi proposta em 15 de abril, após a abertura de inquérito civil público contra a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a União, representada pela Advocacia Geral da União (AGU), e a concessionária CCR RioSP, que opera os pedágios.

A decisão da 26ª Vara Federal do Rio proibiu também novas multas até que seja comprovada a eficiência do sistema. Estima-se que tenham sido aplicadas 32 mil multas.

Ao Estadão, o MPF do Rio diz que não é contrário à tecnologia, mas quer preservar o motorista. “O MPF e as Defensorias entenderam que as falhas precisam ser resolvidas. Os consumidores não podem ser punidos por um serviço que está em fase de experimento e é prestado de forma ineficiente, sem receber informações claras sobre quanto deve, porque deve e como pagar”, afirma.

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  • O sistema está na Rio-Santos (BR-116) entre o km 380, no bairro de Campo Grande, zona oeste do Rio, e a divisa com São Paulo, entre Paraty e Ubatuba. No total, são 144 quilômetros.
  • A tarifa básica (carros) é de R$ 4,60 das 6h de segunda-feira às 18h de sexta e, nos feriados e fins de semana, entre as 18h de sexta e 6h de segunda, de R$ 7,60. Para veículos comerciais, a tarifa é multiplicada pelo número de eixos e há isenção para motos, ambulâncias, veículos oficiais e do corpo diplomático.

Conforme a CCR RioSP, o sistema já registrou mais de 13 milhões de transações. O pagamento automático (tag) representa 67% das transações dos clientes da concessionária. E afirma que, considerando o universo dos usuários, 98,6% das transações estão disponíveis para pagamento em até 4 horas após a passagem pelos pórticos e 99,9% em até 12 horas.

A empresa diz ainda ter ampliado seus canais de pagamento, com totens de autoatendimento em suas bases. Segundo a CCR RioSP, a média de calote no sistema é de 10%, considerando dados de março.

Além do pagamento automático pela tag, a CCR RioSP têm outras modalidades de pagamento, como o aplicativo da CCR Rodovias, o WhatsApp e a rede credenciada e os totens de autoatendimento. O autopagamento permite consultas apenas pelas placas e, ao usuário cadastrado no app, o sistema envia notificações e avisos de alerta.

Sobre a decisão judicial, a CCR informa que adota todas as providências para prestar os esclarecimentos necessários à Justiça e diz investir continuamente no aperfeiçoamento da tecnologia.

Ainda segundo a empresa, o sistema segue operando e a liminar não desobriga quem trafega pela via do pedágio. “A concessionária continuará a cumprir com suas obrigações contratuais de comunicar o órgão autuador sobre as passagens de pedágio que não forem eventualmente quitadas dentro do prazo estabelecido pela legislação”, diz.

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Novos contratos preveem multa por notificação errada

No Rio Grande do Sul, um aditivo no contrato prevê multa de R$ 950 para cada notificação errada que a concessionária enviar ao usuário que acabe resultando em autuação. Segundo o secretário estadual de Parcerias e Concessões, Pedro Capeluppi, como o sistema gaúcho começou a operar depois daquele da CCR, foi possível estudar o modelo fluminense e introduzir algumas mudanças como a da multa.

“Isso fez com que a concessionária criasse sistemas de barreiras e checagens para evitar autuação indevida. Vimos que no Rio a queixa maior era a dificuldade de contato com a concessionária, por isso foram criados canais extras de comunicação. As bases de suporte ao usuário foram instaladas nos dois lados das rodovias”, afirma.

Embora o sistema gaúcho opere com o free flow, a cobrança ainda é por trecho percorrido e não por quilômetros rodado. “Estamos em um período de transição para a cobrança por km, o que deve acontecer em dois anos. Nas novas concessões, o modelo já prevê isso.”

Conforme o gestor, a inadimplência no sistema está próxima de 10%, mas no pórtico mais antigo é de 5%. Segundo Capeluppi, não tem havido reclamações sobre a cobrança, mas surgiram queixas pontuais sobre a falta de isenção para moradores de áreas próximas aos pórticos.

  • No Rio Grande do Sul, o pedágio free flow começou em 15 de dezembro de 2023 na ERS-122, entre Antonio Prado e Flores da Cunha. Outros pórticos foram instalados em seguida e operam desde 30 de março nas rodovias ERS-240 e ERS-446, entre a Serra Gaúcha e o Vale do Caí, totalizando 271,5 km.
  • Como no Rio, o motorista tem até 15 dias para pagar. Usuários com tag têm desconto básico de 5% e para quem faz uso frequente da via o desconto pode chegar a 20% (a partir de 20 passagens por mês).

Segundo o secretário, a liminar que suspendeu as multas no Rio não afeta os planos de expansão em seu Estado, mas preocupa. “Nosso sistema tem operado de forma satisfatória e somos o primeiro Estado a contar com a tecnologia em toda uma concessão. No momento, estamos realizando a modelagem das concessões do Bloco 1 e 2, que também deverão ter o free flow. Preocupa porque esse é o futuro das concessões de rodovias. Não podemos deixar isso dar errado.”

A Caminho das Serras Gaúchas (CSG), que tem a concessão das rodovias com free flow no Rio Grande do Sul, disse que não conhece o teor da ação judicial envolvendo a CCR Rio SP, mas diz trabalhar na expansão do número de pórticos de free flow para descentralizar a cobrança nos seis pórticos atuais que substituíram as praças de pedágio convencionais. Informa ainda que estuda a viabilidade para expandir seu trecho de atuação pela BR-470, entre Nova Prata e Bento Gonçalves.

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Em São Paulo, as rodovias concedidas à iniciativa privada não operam com o free flow, mas todos os novos projetos de concessão rodoviária em andamento, incluindo Rodoanel Norte, Lote Litoral Paulista e Nova Raposo, já preveem a inclusão do sistema.

Rodoanel Norte, cujas obras foram retomadas neste mês, adotará o sistema free flow Foto: Felipe Rau/Estadão

Conforme a Agência de Transporte do Estado (Artesp), as novas concessões preveem penalidades para cobrança indevida, a exemplo do que é feito no Rio Grande do Sul. O valor é multiplicado por cada passagem com cobrança indevida. Os valores, não informados, variam para cada lote da concessão.

Rodovia Ayrton Senna teve testes

Ainda em 2021, a concessionária Ecorodovias instalou um pórtico de free flow na Rodovia Ayrton Senna (SP-070), mas apenas como projeto piloto, sem cobrança de tarifa ou aplicação de multa. “À época, a EcoRodovias já entendia que o free flow seria tendência de modernização das viagens a ser adotada também no País e buscou antecipar os testes para aprendizado e aperfeiçoamento, o que nos permite hoje ter um modelo robusto”, disse. Ainda não há data definida para início da operação.

  • O free flow ainda está em fase de testes na MG-459, em Monte Sião. A EPR Sul de Minas, responsável por administrar oito rodovias no sul do Estado, faz campanhas informativas sobre o novo sistema. A previsão é de que os pórticos comecem a operar este semestre.
  • No Espírito Santo, há estudos para o pedágio automático em um trecho de 67,5 km da ES-060, conhecida como Rodovia do Sol, e na Terceira Ponte, que liga Vitória a Vila Velha.
  • No Paraná, os contratos de concessão das rodovias dos lotes arrematados em janeiro pelas empresas Via Araucária e EPR Litoral Pioneiro para administrar mais de mil quilômetros de estradas estaduais e federais já preveem a implementação gradativa do free flow, mas ainda não há prazos definidos, segundo o governo estadual.

Para a Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), a ampliação do free flow é uma tendência. “O funcionamento do sistema na CCR RioSP, por exemplo, confirmou a viabilidade técnica dos equipamentos e meios de aferição de passagem dos veículos, superando as expectativas relacionadas ao comportamento dos usuários e à taxa de adimplemento das tarifas”, disse a entidade.

A Infra S.A., empresa pública federal que desenvolveu estudos para viabilizar o free flow no País, abriu edital de chamamento e recebeu propostas visando, entre outras melhorias, a simplificar as formas de cobrança e pagamento.

A estatal detalhou que, recebeu sugestões do mercado para aprimorar o free flow, focando na resolução de problemas ligados a pagamentos, oferta de canais de quitação, prazos e multas. “As propostas recebidas serão avaliadas pela equipe técnica da Infra e submetidas à agência ANTT para possível inclusão em novos testes”, disse.

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O Estadão apurou que, entre as medidas propostas, estão aumentar o desconto para usuários frequentes e veículos com tags. Outras sugestões são no sentido de que o governo e as concessionárias ampliem a divulgação sobre o sistema para que seja mais conhecido e aceito pela população.

Presidente da Associação Brasileira das Empresas de Pagamento Automático para Mobilidade (Abepam), André Turquetto, defendeu maior diferenciação tarifária para incentivar a adesão ao pagamento automático por meio de tags, o que reduziria a evasão. “Os descontos vigentes não são suficientes para incentivar o uso, principalmente por usuários não frequentes.” Hoje, o desconto para quem usa tag é de 5% e o de usuário frequente, embora maior, não é adotado de forma ampla e apenas para veículos leves.

Segundo ele, há mais de 60 milhões de veículos leves no Brasil e cerca de 12 milhões de tags instaladas, média de 20% do segmento. “Com a expansão do modelo de concessões e, consequentemente, do free flow, cerca de 20 milhões de veículos poderão contar com os benefícios das tags nos próximos dois ou três anos, o que representa percentual de aumento de mais de 66% no período”, estimou.

Conforme Turquetto, o uso da tag ajuda o motorista, que não precisa se preocupar em esperar a cobrança para fazer o pagamento. E também é bom para a concessionária, que recebe de forma automática.

A ANTT informa que se pronunciará judicialmente sobre a decisão judicial quando acionada. “No entanto, é importante destacar que, para a cobrança de pedágio, foi feito um aditivo contratual que seguiu todos os ritos processuais legais para seu funcionamento em plena forma. O free flow é uma iniciativa introduzida no âmbito do Sandbox Regulatório, iniciado em março do ano passado, com duração prevista de dois anos.”

Conforme a estatal, este ambiente experimental serve para análise da melhor modelagem antes de aplicar em todas as rodovias concedidas. “Qualquer eventualidade pode ser ajustada durante o período de realização do Sandbox Regulatório (testes de uma inovação a ser regulada)”. Além disso, prossegue, “em casos de problemas e dúvidas, os usuários da rodovia podem entrar em contato com a concessionária por meio dos canais oficiais de comunicação para esclarecimentos”.

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