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A morte como o sentido do eros

Por Carlos de Brito e Mello
Atualização:

Sob a bruta turvação de um temporal que movimenta árvores e compete com os estrondos do mar, aturdido diante de um "castelo mal-assombrado" e do objeto de sua busca e fascínio, o protagonista de História do Olho, de Georges Bataille, chora. Os elementos da natureza não constituem uma paisagem ordinária e habitual. São aparições súbitas e perturbadoras de uma força incivil, condição para que a escrita do texto se realize em uma poética de amor e morte."Caminhei quase a noite inteira à beira-mar, mas sem me afastar muito de x, devido à sinuosidade da costa", informa o narrador. Indeterminado, "x", lugar em cuja praia ele conhece a amante Simone, marca um enigma, denunciando a instância de falta em torno da qual a narrativa se desenvolverá. No livro, tornar-se leal aos acontecimentos significa alcançar a dimensão fantasmagórica da escrita para a qual os personagens, gozosamente, se destinam.O enigma é a morte, sentido último do erotismo, segundo o autor. Intensificar o prazer, exagerando-o, resulta em transbordamentos e perdas: a urina, as fezes, o esperma e o sangue compõem uma "imundície abundante" que caracteriza tanto a vitalidade quanto o desfazimento do organismo. O sol, o ânus, o ovo e a roda tornam-se representantes de uma perspectiva que se vinculou inextrincável e violentamente às propriedades de um olho, órgão dotado de uma ausência central, de um furo a partir do qual a visão se forma, mas incapaz, pela mesma razão, de conter "tudo o que arruína definitivamente a beatitude e a consciência tranquila".O vento que deslocava os cabelos dos personagens diante do castelo é a própria escrita que passa no céu devassado do texto de Bataille. Os organismos se dissolvem no processo de escritura como o grafite do lápis deve desfazer-se de si mesmo, num morrer pelo atrito.Para o autor, o erotismo está relacionado a uma violação primordial. Arrastando o prazer para uma zona de morbidez experimentada na literalidade da carne, a "relação amorosa tão íntima e urgente" celebrada pelos personagens faz de amar, amarra: "era como se eu quisesse escapar do abraço de um monstro, e esse monstro era a violência de meus movimentos." Se a morte está no horizonte de todo jogo erótico, no ato sexual morre-se sempre e incessantemente. Esse perigo é também próprio de uma escrita que, ao tangenciar o real, nos vergasta e nos fascina.CARLOS DE BRITO E MELLO, ESCRITOR, É AUTOR DE A PASSAGEM TENSA DOS CORPOS (COMPANHIA DAS LETRAS)HISTÓRIA DO OLHO Autor: Georges BattaileTradução: Eliane Robert Moraes Editora: Cosac Naify(138 págs., R$ 56)

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