Em menos de 24 horas, o mundo ganhou uma santa e perdeu uma bruxa. A santa, como sói acontecer com os santos, já havia morrido quando o Vaticano a canonizou, no domingo passado. Nasceu Anjeze Gouxhi Bojaxhiu, viveu e ganhou fama como Madre Teresa de Calcutá, e tornou-se, como esperado, a primeira Santa Teresa do milênio. Phyllis Schlafly, a bruxa, morreu no dia seguinte, aos 92 anos, cinco anos mais idosa que a madre ao deixar esta vida, em 1997. Apesar de católica e beata, Schlafy não leva a menor chance de ser canonizada.
Pouco conhecida no Brasil, a “primeira-dama do movimento conservador americano”, penhor e flecha do retorno dos republicanos à Casa Branca com Ronald Reagan, na década de 1980, foi uma figura fascinante. O populismo de direita nunca teve missionária com tamanha estâmina e comparável presença em todos os meios de difusão. Os liberais, os progressistas, os democratas e, especialmente, as feministas, a execravam. Rica, alinhada, sempre adornada por um colar de pérolas, era a própria imagem da americana quatrocentona, aristocrática, demasiado fidalga para voar numa vassoura. Se necessitasse de um caldeirão para fazer mandingas, provavelmente encomendaria o seu à fábrica de panelas Le Creuset.
Seus admiradores repudiavam tais maledicências. Donald Trump, cuja candidatura ela endossou seis meses atrás com o mesmo entusiasmo dedicado à fracassada campanha do reaça Barry Goldwater em 1964, chamou-a de “paladina das mulheres”, o que na certa horrorizou Hillary Clinton e milhões de americanas, vítimas diretas e indiretas das pias e misóginas diatribes da elegante senhora. Schlafly liderou ferozes cruzadas contra o aborto, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a homossexualidade (apesar de um de seus filho ser gay), o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a entrega da presidência do país a uma mulher.
Outros, uma vez mais contrariando o milenar aforismo de que dos mortos só dizemos coisas boas (Shakespeare discordava: “Aos homens sobrevive o mal que fizeram”), malharam madame sem dó nem piedade nas redes sociais. A rainha da Branca de Neve teria levado menos bordoadas no Twitter e no Facebook. “Ela deve estar feliz porque foi enfim reunir-se a Satã”, tripudiou um internauta.
A mais dinâmica e influente ativista de direita da América desde que as “Filhas da América” aposentaram os machados com os quais arrebentavam barris durante a Lei Seca, Schlafly foi uma William F. Buckley Jr. de tailleur. Montou do nada uma coalizão nacional que, antes mesmo de ganhar nome (“Eagle Forum”) e alvará, já convertera uma massa considerável de “velhinhas de tênis”, sua mais fiel base de apoio.
Com frases do tipo “assédio sexual não é problema para moças virtuosas”, “aula de educação sexual equivale a um bazar para coletar doações para abortos”, “a bomba atômica foi um presente de Deus à América”, deixou no chinelo suas contemporâneas e, de certo modo, herdeiras Anita Bryant, Suzanne Venker, Ann Coulter e Michele Bachmann.
Nas pegadas de Ayn Rand, o ogro mais graduado do conservadorismo americano, e Midge Decter, decana da intelectualidade republicana (ainda viva, rondando os 90), Schlafly adestrou sua belicosidade na trincheira anticomunista, nos anos 1950. Fez o jogo do senador Joe McCarthy, mas jamais lhe deu apoio em público, concentrando sua energia no combate ao feminismo e suas conquistas. Até com tortas de maçã tentou seduzir congressistas a votarem contra a emenda pela igualdade de direitos. Ao final de um debate, em Nova York, levou uma (não cozida por ela, claro) na cara.
Embora fosse tão ou mais conservadora do que Schlafly, uma humilde mas inflexível pregadora contra o divórcio, o controle de natalidade e o aborto (a seu ver, a maior ameaça à paz mundial), Madre Teresa enfrentou menos reparos à imaculabilidade do seu trabalho do que talvez merecesse. Sua imagem de missionária caridosa e humanitária ficou um bocado arranhada depois que o escritor e jornalista britânico Christopher Hitchens (1949-2011) a denunciou como mentirosa, amiga de ditadores, hipócrita (combatia o divórcio, mas defendeu publicamente o de sua amiga Lady Di), e por lavagem de dinheiro.
O cientista político nova-iorquino Michael Parenti, o antropólogo inglês Robin Fox, o médico indiano Aroup Chatterjee e o Conselho Mundial Hindu também questionaram a hagiolatria que em torno dela a mídia internacional – e até Woody Allen, através da personagem de Mia Farrow em Simplesmente Alice – ajudaram a consolidar. Criticaram a baixa qualidade dos serviços assistenciais e hospitalares patrocinados por ela, acusaram-na de empregar sua organização religiosa (Missionárias da Caridade) para, prioritariamente, converter pobres à beira da morte ao catolicismo.
Nem a jornalista inglesa Anne Sebba, autora do respeitoso relato biográfico Madre Teresa: A Imagem e os Fatos (traduzido em 1998 pela Vozes, esgotado), a poupou de algumas estocadas. Revelou, por exemplo, que a madre não usava analgésicos eficazes e, ao utilizar remédios contra tuberculose sem monitoramento dos pacientes, muito contribuiu para agravar a doença e torná-la epidêmica.
Hitchens foi o primeiro a jogar lama no burel da madre. Num artigo para o semanário The Nation, publicado em 1994, chamou-a de “demônio de Calcutá”, praticante de “um culto baseado na morte, no sofrimento e na submissão”, na “indulgência para os ricos e sacrifício e resignação para os pobres”. Dessa embaraçosa invectiva sairia, três anos depois, o livro maldosamente intitulado The Missionary Position (“A posição de missionário”), cuja conotação sexual não impediu que o autor fosse convidado pelo Vaticano para apresentar provas contra a beatificação de Madre Teresa.
O que mais incomodava Hitchens era o desembaraço com que ela se relacionava com déspotas e bilionários da pior espécie. Condecorada no Haiti pelo sanguinário Duvalier, dele tornou-se amiga e propagandista. Depois de lavar US$1,25 milhão que o banqueiro Charles Keating roubara a milhares de modestos poupadores, tentou abrandar sua pena, alegando ser ele “amigo dos pobres”. Quando o promotor sugeriu que a madre primeiro devolvesse a grana doada por Keating, ela se fechou em copas.
Se Hitchens atendeu ao convite do Vaticano, suas críticas não foram suficientes para sustar a beatificação de Madre Teresa e sua posterior canonização. Desde o último dia 4, ela é santa. Já Phyllis Schlafly não precisou morrer para virar bruxa.