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Racismo contra filha de Samara Felippo: ‘Brasil pune muito, mas não educa’, diz especialista

Educadora da Unicamp, que estuda conflitos em escolas, diz que expulsão não é a melhor saída porque mudança só ocorre se houver ‘tomada de consciência’ pelos jovens agressores

Foto do author Renata Cafardo
Por Renata Cafardo
Atualização:
Entrevista comTelma VinhaEducadora especialista em conflitos e professora da Unicamp

Uma das maiores estudiosas sobre conflitos em escolas do País, a professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Telma Vinha diz que não se pode resolver problemas de violência ou preconceito somente com expulsão.

A discussão veio à tona com o caso de racismo ocorrido neste mês com a filha da atriz Samara Felippo no Colégio Vera Cruz, na zona oeste da capital. A mãe tem criticado a escola por apenas suspender as meninas que roubaram o caderno da filha, arrancaram folhas, e escreveram uma ofensa de cunho racial em uma página.

Segundo Telma, apesar do pedido da família ser uma reivindicação legítima, o papel da escola é o de educar, e não o de punir. E que a mudança só vai acontecer pela “tomada da consciência”. “A função educativa da escola tem de se pautar por uma conscientização, reparação. Errar e aprender com o erro faz parte, principalmente quando são crianças ou adolescentes”, afirma. “A gente tem de tomar muito cuidado para não criminalizar a juventude.”

Para a pedagoga, as ações precisam acontecer em toda a escola, com discussões nas salas de aula de todas as séries e muitos trabalhos sobre o racismo para os autores. “Você pode trabalhar com todos numa ideia de como nós podemos nos ajudar para que essas coisas não aconteçam mais na nossa escola. Aquela comunidade pode aprender”, afirma.

“Isso é a ideia do coletivo, mas o Brasil é um país que pune muito, não educa. E vê a mediação do conflito como passar pano”, diz Telma, doutora em Educação e professora do Departamento de Psicologia Educacional.

Samara Felippo relatou ofensa racial contra a filha em escola particular de São Paulo Foto: Reprodução/Encontro com Patrícia Poeta/TV Globo

Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

A atriz Samara Felippo, mãe da menina vítima de racismo, tem pedido a expulsão das colegas, assim como muitos pais nas redes sociais, em grupos de pais no WhatsApp. Como a escola deve agir?

A exclusão de um ambiente escolar é uma reivindicação legítima porque só a família e vítima sabem da sua dor. Os sujeitos mais importantes nessa história são a vítima e a família dela. E o caminho legal é uma possibilidade, mas a perspectiva que a gente traz é pensando na escola como um papel pedagógico. Porque, mesmo sendo crime, estamos falando de uma da escola, um lugar de aprendizagem, convivência, de aprender a viver na sociedade.

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A expulsão da escola pode sinalizar a todos que isso não é permitido, que isso é muito grave, mas a função educativa da escola tem de se pautar por conscientização, reparação. Defendo a escola como transformadora. E errar e aprender com o erro faz parte, principalmente quando são crianças ou adolescentes. Ensinar os colegas que você pode errar e superar os erros também faz parte da educação, que tem de ser humanizadora.

A gente tem de tomar muito cuidado para não criminalizar a juventude. O adolescente não tem de ser destruído por um erro, mesmo, que seja uma violência. No próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, o ato infracional é visto como medida socioeducativa, então o adolescente não é punido como adulto. O objetivo da medida socioeducativa é fazer com que o adolescente entenda a consequência das suas ações. Se pelo ECA ele é reintegrado à sociedade, a gente sempre defende que ele passe por uma reintegração positiva naquela comunidade que ele está, que é a escola.

Mas as pessoas defendem tolerância zero, como se aprendizagem se desse por punição vexatória, exagerada. E nos estudos que a gente faz de radicalização dos jovens, isso é um prato cheio. A humilhação faz com que eles eles encontrem lugares em que esses sentimentos são canalizados.

Hoje é possível expulsar alunos das escolas em quais condições?

Se o regimento permite e é muito bem fundamentado como infração grave, a escola poderia expulsar. Mas cabe sempre recurso. O que tenho visto nas escolas é fazer algo em comum acordo com os pais, demonstrando a dificuldade de aquele aluno ficar. Só que é preciso lembrar que ele vai para outra escola. É muito sério criminalizar a juventude. Pode ser o meu filho, o seu. A escola tem que educar a partir disso.

O fato surpreende por ter acontecido numa escola que foi pioneira na rede privada em ter um projeto antirracista?

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Por melhor que a escola seja ou tenha um projeto antirracismo, essas coisas vão acontecer porque a gente está falando de uma mudança de cultura. Nenhuma escola está isenta. E quando você começa a trabalhar desigualdades, se não tiver um bom trabalho com conflitos, as tensões da violência que era naturalizada passam a não ser mais, no sentido de que todos estão mais atentos. A gente também tem de considerar que estamos numa sociedade estruturalmente racista. Mesmo com luta antirracista, com solidez ou letramento racial, isso vai acontecer. Por isso que a gente tem de continuar forte nesse letramento. Tem de defender as escolas nesse fortalecimento; e não atacá-las.

O que a escola deve fazer em vez de expulsar?

É preciso ter uma tomada de consciência do adolescente sobre o que aconteceu. Estudar o que está por trás daquilo. Faz parte da reparação uma conscientização e uma aprendizagem com o que se fez.

E como deve ser a atitude com a vítima?

A primeira coisa é escuta e acolhimento, sem ter a dor minimizada. Não se pode passar pano ou perguntar o que ela fez para aquilo acontecer. Quem vai abordar tem de ser uma pessoa preparada, com comunicação não violenta e que seja próximo a essa criança, alguém que ela confia e que tenha o máximo de informação possível. Quando você vai conversar com a vítima, é preciso saber como ela se sente, o que gostaria de ser feito para que ela se sinta bem. Às vezes, por exemplo, a pessoa só quer um pedido de desculpas e uma garantia que isso não se repetirá. Não é que você está minimizando, mas para ela aquilo é suficiente. As escolas também precisam dar retorno rápido para a família da vítima, porque às vezes a escola tem ações, mas não comunica os envolvidos. Aí a sensação que os pais têm é de que não se está fazendo nada.

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Além disso, como a escola tem que atuar com comunidade escolar toda?

Essa questão da comunicação é fundamental. E a comunicação não é atender as demandas, mas acolher as angústias e dizer “nós estamos fazendo”. Nunca minimizar ou dizer que é brincadeira ou coisa de criança. Precisa mostrar as ações nas várias instâncias, com a vítima, com os autores, com os demais alunos. A partir do momento que o fato aconteceu toda a escola sabe, isso tem que ser discutido. Começa pela classe, então discutir com eles como eles veem a questão, como se sentem quando isso acontece em outros espaços.

Muitas vezes eles vão dizer que foi grave, mas vão se comprometer também a estarem atentos se isso acontecer de novo e intervir. Você pode trabalhar com os meninos numa ideia de como nós podemos nos ajudar para que essas coisas não aconteçam mais na nossa escola. Aquela comunidade pode aprender. E esse mesmo processo tem que ser aberto e falado em todas as turmas, guardadas as devidas proporções, diferença de idade. Mas não é uma coisa que eu tenho que botar um tampão, ao contrário, essas dores, esses sofrimentos, esses dilemas se discutem. A escola não percebe que quando ela fecha as portas e só solta uma nota isso é ruim. A nota não é suficiente para tirar dúvidas.

Há quem peça também para se responsabilizar criminalmente os pais.

Eu acho isso sério porque primeiro a gente não defende uma escola com denúncia, defende uma escola de cuidado. A gente é muito bom em punir, mas não é muito bom em cuidar. Uma coisa é pedir ajuda porque estou enfrentando um problema, outra coisa é denunciar. A punição para os pais, quando você vir que o pai é negligente, você chama na escola, tenta trabalhar aquilo e aquilo se repete, tudo bem. Até entendo você acionar esses pais e dizer: olha, se não houver envolvimento, vocês que vão responder por isso, mas nunca como primeira alternativa.

Nos Estados Unidos, houve recentemente um caso em que os pais foram condenados pelo massacre que o filho cometeu numa escola.

Lá, eles tinham inúmeras negligências e o menino claramente apresentava transtornos psicológicos, era violento e, mesmo assim, os pais compraram uma arma. Tem momentos que, sim, tem responsabilidade dos pais. O que não pode é no primeiro problema, a gente se resguarda, criminaliza família, os jovens, e deixa de ter função educativa.

Há também o discurso de que a sociedade está complexa, com muitos desafios, tudo chegando à escola. E ela não teria como lidar com tudo.

A quantidade de funções que uma escola tem é muito maior do que tinha há 20 anos. A lógica de uma escola que foi pensada não dá conta mais, a quantidade de especialistas, de alunos por sala, horas do professor. De fato, se traz um papel muito maior para escola, mas ao mesmo tempo não se trazem outras condições de trabalho que permitem essa escola dar conta das questões complexas, mesmo nas escolas privadas. Mas também não dá para acrescentar mais coisa na escola, a gente tem de fazer uma reavaliação do que é necessário no momento da sociedade. Aquilo que se ensina é realmente relevante para os tempos atuais? Tem de colocar tudo isso no currículo? Tem a gramática, a mitocôndria. A gente sabe que a escola tem cada vez mais um papel enquanto função social, de aprender a conviver. Isso tem de acontecer na escola porque é o espaço social por excelência, onde você vai conviver como diferente.

Mas esse é um papel da sociedade toda também, do coletivo.

Sim. Uma educação antirracista deve ocorrer na escola, mas não somente na escola. A família tem de trabalhar com os filhos que não existe piada racista, que isso é violência. Se tem criança brincando na minha casa e ela xinga o outro de rolha de poço, você faz uma intervenção e fala: “por que que você chamou alguém assim? Você está bravo com ele e ofende, pegando uma característica física?” E a escola também tem de trabalhar com as famílias. Trabalhar por meio dos conflitos que aparecem. Essa comunidade pode discutir e não só conversar no sentido de “vamos expulsar”, mas o sentido de que isso pode acontecer com o filho de qualquer um. Aquela comunidade pode ou não sair mais fortalecida. Isso é a ideia do coletivo, mas o Brasil é um país que pune muito. E vê a mediação do conflito como passar pano. Tudo a gente pune, e não educa.

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