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Agoniza, mas não morre

Teórico francês Jean-Pierre Sarrazac, que lança livro e faz conferência em SP, defende sobrevivência do drama no teatro contemporâneo

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

O teatro jogou por terra tudo aquilo que lhe parecia inerente há pouco mais de um século. Os espetáculos contemporâneos livraram-se do conceito de conflito. Passaram a rejeitar os diálogos. Enfraqueceram os personagens até dissolvê-los. Daí, depreende-se que o drama esteja morto. Ou será que não? Ao menos é essa a crença que circula por aí desde que Peter Szondi discorreu sobre a "crise do drama" e o alemão Hans-Thies Lehmann lançou o seu Teatro Pós-Dramático - espécie de Bíblia do teatro de vanguarda.Como voz dissonante, o francês Jean-Pierre Sarrazac surge para reafirmar que o drama não apenas está vivo, mas em grande forma. Em suas obras, o ensaísta e dramaturgo defende que a vigente dissociação entre texto e cena pode ser benéfica para o drama. "Vejo uma transformação genuína na forma dramática, um alargamento do drama nos sentidos da vida social e íntima", disse ele em entrevista ao Estado, pouco antes de embarcar para São Paulo. Em sua estada no Brasil, o estudioso participa das atividades que celebram os 30 anos do CPT - Centro de Pesquisa Teatral, do diretor Antunes Filho, e também lança, pela Cosac Naify, o livro Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. O senhor fala em liberar a poética do drama do movimento dialético proposto por Peter Szondi. Da mesma maneira como se contrapõe à visão fatalista de Hans-Thies Lehmann. Conclui-se, portanto, que o senhor não crê na morte do drama, correto? Szondi escreveu Teoria do Drama Moderno em meados dos anos 1950, quando o teatro épico brechtiano era uma ideia dominante. Desde 1960, o estado de espírito e o mundo mudaram. Vimos um movimento em direção a uma maior subjetividade da forma dramática. A dimensão da intimidade - que não é o "privado", o "doméstico" - tornou-se cada vez mais importante. Penso, por exemplo, nos trabalhos para teatro de Marguerite Duras. Para ilustrar, eu diria que não se trata de esquecer ou expulsar Brecht, mas de colocá-lo em tensão com Strindberg e sua dramaturgia da cena doméstica. Vejo uma transformação genuína na forma dramática, um alargamento do drama nos sentidos da vida social e íntima. Aparentemente, o senhor não acredita que o termo pós-dramático seja capaz de dar conta da complexidade do teatro contemporâneo. Qual é a sua visão sobre esse conceito? Quais são as suas limitações? Acho notável a maneira como a análise de Lehmann se relaciona com produções como as de Bob Wilson, que tratam o texto como um material reduzido à sua expressão mais simples. Lehmann entendeu o fenômeno que ocorreu no início do século 20, ou seja, a dissociação entre o drama e o teatro. Acabou o textocentrismo. Mas não devemos substituí-lo por um "cenocentrismo". Em última análise, não concordo com Lehmann. Para mim, o drama continua muito vivo, mesmo que seu paradigma tenha mudado. Mesmo que os espetáculos hoje não se baseiem em uma peça teatral ou em uma forma dramática.O livro Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo, que está sendo lançado no Brasil, atualiza conceitos desse novo momento do drama. O que moveu seu grupo de estudos nesse projeto? Existe uma necessidade de rever certos conceitos? Há mais de 15 anos, criei um grupo de pesquisa na Sorbonne Nouvelle. A construção do Léxico... foi um momento importante na vida desse grupo, que reuniu pesquisadores, acadêmicos, bem como pessoas de teatro, escritores e diretores. A ideia era forjar ferramentas poéticas e dramatúrgicas para analisar peças modernas e contemporâneas. Ferramentas como o desvio, a rapsódia, a teatralidade, a crise do diálogo, etc. Minha esperança é que este livro - que deve ser periodicamente atualizado - permita uma leitura mais atenta de autores modernos, como Ibsen e Strindberg, e contemporâneos, como Thomas Bernhard e Jon Fosse. O senhor fala sobre o drama e suas possibilidades de reinvenção. Mas qual é sua visão sobre o teatro épico? Brecht criava fábulas de dimensão política, social. O contexto histórico mudou, tornou-se cada vez mais difícil sustentar discursos políticos unívocos. Como o épico se coloca diante disso? É possível que um teatro épico sobreviva, mesmo apartado das fábulas às quais estava ligado em sua origem? Voltamos à questão da subjetividade. Brecht rejeitou a parte da intimidade. Ele mesmo dizia não ter ferramentas para responder a essas questões que, na verdade, não o interessavam. Brecht se destaca pela forma genial como capta o comportamento social dos homens. Mas eu diria que as peças contemporâneas revelam uma outra coisa. Trata-se de retornar a Büchner e ao seu Woyzeck, a Strindberg e à sua Senhorita Julia. Sarah Kane é muito próxima de Strindberg. Nós precisamos hoje de um teatro que realize a fusão do social, do político e da psicanálise - não como vulgata, mas como um discurso sobre o inconsciente. Esse teatro que busca novas formas dramáticas também é - via de regra - um teatro apartado do grande público. Esse é um caminho irreversível? O teatro nunca mais será uma arte para as massas? Meu sonho, a utopia que espero concretizar, é reconciliar arte elevada e arte popular. Assim como era na idade de ouro do teatro ocidental, como na tragédia grega, no teatro elisabetano de Shakespeare. O diretor Antoine Vitez, citando Schiller, gostava de falar em um "teatro elitista para todos". É um belo paradoxo. Além de rejeitar os conceitos de "crise do drama" ou "fim do drama", o senhor defende que essa dissociação entre teatro e texto pode ser benéfica para a forma dramática. De que maneira isso se daria? No fim do século 19, com o advento da encenação moderna - Wagner, Antoine, Stanislavski -, o texto dramático encontrou, na sua própria incompletude, a sua abertura. Em cada peça há um vazio que chama o palco, a relação com o espectador. É o que eu chamo de devir cênico de um texto teatral. Um texto forte para o teatro é aquele que tem a forma aberta, rapsódica, que não só expressa seu desejo pela cena, pelos atores, pelo público, mas também reinventa essa relação. Em seus escritos, Beckett não surge como um autor pós-dramático, como acredita Lehmann. Da mesma forma, Koltès e Handke também não são encarados dessa forma. Por que eles lhe parecem autores de uma nova dramática e não de obras que transcendam ou neguem o drama? É sobretudo a análise de Adorno para Fim de Partida que eu recuso. Adorno decretava ali a agonia e a morte do drama. E ele se enganava: trata-se da agonia de um velho teatro e, ao mesmo tempo, do advento da modernidade no teatro. Adorno considerava impossível que a forma dramática explicasse um aspecto fundamental da sociedade contemporânea, ou seja, o anonimato, o poder do dinheiro. No entanto, hoje, muitos autores dramáticos trabalham sobre questão do anonimato, sobre a vida banal de pessoas comuns.

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