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Arte e vida estão sempre se cruzando no novo livro de Annie-B Parson

Por Rebecca Ritzel

THE WASHINGTON POST - Como jovem jornalista de artes em início de carreira, tive a sorte de ter um amigo que trabalhava num emprego parecido numa cidade próxima, e gostávamos de trocar figurinhas. Certa vez, ele contou ter entrevistado uma fã ardente de Thomas Kinkade em um shopping da Pensilvânia: ela estava na fila para pegar o autógrafo do artista e insistiu que suas pinturas de farol combinavam bem com suas almofadas da NASCAR.

Na mesma época, escrevi sobre uma produção de ‘Romeu e Julieta’ com uma atriz australiana que dizia que sua luta para imigrar com um “visto de noiva” refletia as agruras de sua heroína. A vida imitava a arte ou a arte imitava a vida? Este era o tipo de pergunta que nos confundia quando falávamos sobre peças, galerias e orquestras locais. E também sobre dança. “O que adoro de escrever sobre dança”, meu amigo disse uma vez, “é que podemos usar esses verbos de ação ótimos”.

Os verbos são bailarinos da gramática

Annie B-Parson

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Nesse ponto, a coreógrafa Annie-B Parson concordaria. “Os verbos são bailarinos da gramática”, ela escreve em seu novo livro de memórias sobre a interseção entre arte e vida. “E embora as preposições sejam úteis para o posicionamento, elas não têm o músculo, a velocidade dos verbos”.

The Choreography of Everyday Life é o terceiro livro de Parson, e vale a pena ler por suas observações gramaticais astutas, entre outras reviravoltas inteligentes. Se você já ouviu falar de Parson, provavelmente é por causa de sua colaboração com o músico David Byrne: o espetáculo da Broadway ‘American Utopia’, que ganhou um Tony e estreou na HBO em 2020.

David Byrne e sua banda tocam no musical da Broadway 'American Utopia'  Foto: JEENAH MOON/REUTERS

Para os especialistas em arte, no entanto, Parson é cofundadora do Big Dance Theatre, um conjunto de cruzamento de gêneros que colaborou com Mikhail Baryshnikov e o grupo musical Bang on a Can, entre outros. Ao lado de seu marido, Paul Lazar, Parson cria obras que fazem referência a outras formas de arte: arte performática sobre compositores, peças sobre contas de Anton Chekhov, danças modernas sobre balé.

The Choreography of Everyday Life é um pequeno volume sobre o processo criativo de Parson que gira em torno dos destaques de sua carreira, em vez de fornecer um relato linear de, digamos, como ela ensinou um ícone da música dos anos 80 a dançar. Como dispositivo de enquadramento, Parson muitas vezes cita Lazar, que passou a pandemia lendo a Odisseia de Homero e discutindo o poema épico por telefone com o filho do casal. Quando Everyday Life começa, Lazar está no sofá e ela na cozinha, ouvindo uns pedaços da conversa deles porque “é um dia impiedoso de agosto e o ar condicionado está ligado no último”.

Parson volta a esse clube do livro entre pai e filho a cada poucas páginas, usando os personagens de Homero como uma desculpa para fazer associações livres. Ela está particularmente interessada na esposa de Ulisses, Penélope, que passa uma década tecendo enquanto espera o retorno do marido, com uma multidão de pretendentes à porta. “Por milhares de anos Penélope foi retratada por artistas e escritores como circunspecta, esperta, paciente”, escreve Parson. “Mas, quando penso em Penélope, imagino uma dança ruidosa de vários homens, com Penélope no centro”.

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Capa de "The Choreography of Everyday Life", novo livro de Annie-B Parson Foto: WP

Espero que esse parágrafo se torne uma coreografia algum dia. O livro apresenta Parson como uma coreógrafa inspirada na arte e na literatura. A tecelagem obsessiva de Penélope vira uma ponte para Parson se lembrar de ver as gigantescas esculturas de ferro de Louise Bourgeois numa retrospectiva do Museu de Arte Moderna. Descrever essa exposição fornece a Parson uma chance para protestar, com uma raiva justificada, contra a teia patriarcal do mundo da arte.

“Para uma retrospectiva do MoMA, se você é mulher, você precisa estar muito velha ou morta, o que significa uma pessoa certamente não sexy e não desafiadora”, observa Parson. “Mesmo a grande pintora Hilma af Klint nunca teve uma retrospectiva no MoMA”.

Essas três últimas palavras aparecem numa linha separada, seguindo uma convenção que Parson emprega várias vezes ao longo do livro. Não são exatamente dáctilos homéricos, mas parecem ter a intenção de espelhar aquela antiga forma literária, e dão a Everyday Life um ritmo facilmente digerível, embora ligeiramente pretensioso.

Para uma retrospectiva do MoMA, se você é mulher, você precisa estar muito velha ou morta, o que significa uma pessoa certamente não sexy e não desafiadora

Annie-B Parson

Mas Parson não é historiadora da arte e, após um exame mais detalhado, a passagem sobre Klint fica problemática: a pintora sueca morreu em 1944, depois de fazer poucas exposições durante a vida e solicitar que sua obra permanecesse selada por vinte anos. (Klint conseguiu uma retrospectiva do Guggenheim em 2019). Além de Bourgeois, Klint e a coreógrafa Trisha Brown, que recebem defesas elogiosas em Everyday Life, a maioria dos artistas passa meio por acaso. “Joyce e Cage e Duchamp e Cunningham eram todos grandes criadores de tempestades”, observa ela. Parson aposta que qualquer pessoa que chegue à página 22 de seu livro conhece bem esses sobrenomes ou terá curiosidade suficiente para pesquisá-los. Ela mesma superou o “deus Google”, comentando a certa altura: “Estou cansada de abrir o computador para saber das coisas”.

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Além das pessoas da dança moderna e talvez artistas visuais com uma inclinação feminista, é difícil dizer quem pode ser o leitor de Everyday Life. Só sei que é o livro perfeito para um seminário de primeiro ano de faculdade de artes, para jovens ansiosos para abrir o computador e saber das coisas. Talvez fosse por isso que minha mente continuasse voltando às velhas conversas com meu amigo jornalista de artes. A prosa de Parson me deixou nostálgica pelos meus vinte e poucos anos, saltando de uma forma de arte e outra, sempre em busca pelo verbo perfeito.

The Choreography of Everyday Life

Annie- B Parson

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Verso - 112 páginas - US $24.95

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Rebecca J. Ritzel é escritora de artes em Arlington, Virgínia.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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