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A história de um padre prisioneiro de Auschwitz assombrou Hilda Hilst. E ela escreveu uma peça

A montagem de ‘As Aves da Noite’, texto escrito em 1968 que ecoa a ditadura militar brasileira, não procura reconstituir o campo de concentração nazista, mas parte dos horrores do Holocausto para lançar um olhar para pautas contemporâneas; peça entra em cartaz em São Paulo

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Da escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004), o leitor se acostumou com obras sobre o feminino e a liberação sexual, algumas delas permeadas pelo erotismo. O que pouco se conhece é sua produção teatral, carregada de reflexões filosóficas e existenciais, a maioria criada no final da década de 1960, em que a autora enveredou por outros temas, a exemplo de As Aves da Noite. A peça aborda as atrocidades do nazismo no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial.

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Sob a direção de Hugo Coelho, a montagem do texto estreia nesta sexta, 24, no Teatro Cacilda Becker, na Lapa, e fica por duas semanas, seguindo uma circulação gratuita por outros espaços municipais, como os teatros Arthur Azevedo, na Mooca, e Paulo Eiró, em Santo Amaro, até 30 de junho. No elenco de nove atores e atrizes estão Marco Antônio Pâmio, Marat Descartes, Regina Maria Remencius, Rafael Losso, Walter Breda, Fernando Vítor, Marcos Suchara, Wesley Guindani e Heloisa Rocha.

Trata-se da primeira temporada presencial de um trabalho online, realizado em 2022, em meio à pandemia, que ganhou o prêmio de melhor peça virtual da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). “Nós vamos para o palco com a mesma concepção, as soluções é que são outras e, como já passou um tempo, introduzimos signos mais contemporâneos, como o personagem do poeta ser representado por um ator preto, o Fernando Vítor”, explica Coelho.

Marco Antônio Pâmio é padre Maximilian Kolbe na pela 'As Aves da Noite', escrita por Hilda Hilst. Foto: Priscila Prade/ Divulgação

O enredo parte da história real do padre franciscano Maximilian Kolbe (interpretado por Pâmio) que se apresentou voluntariamente para ocupar o lugar de um judeu sorteado para definhar no chamado porão da fome em represália à fuga de um prisioneiro.

O religioso morreu em Auschwitz em 1941 e foi canonizado pelo Papa João Paulo II em 1982. O ator define o personagem como uma daquelas figuras iluminadas que doa a vida pelos semelhantes. “Ele era um católico no meio de uma maioria de judeus que carregou uma chama de esperança em contraponto àquela tragédia toda”, afirma.

Os fluxos de pensamentos, tão presentes na literatura de Hilda, são percebidos na dramaturgia. Pâmio ressalta o jogo poético estabelecido entre o Maximilian Kolbe e o carcereiro (papel de Descartes), em que se discute a existência de Deus.

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“Nós somos colocados por Hilda naquele inferno, e o padre tenta convencê-lo de que Deus existe e é bom para as pessoas”, diz. “Mas ela claramente escreveu essa peça como metáfora sobre a ditadura militar e as torturas nos porões da repressão e, nesse sentido, vem o questionamento de uma fé inabalável em cima de tudo o que pode acontecer.”

Montagem volta ao passado para discutir pautas contemporâneas

O diretor Hugo Coelho avisa que a montagem não procura em momento algum reconstituir o campo de concentração de Auschwitz. Para ele, o cinema cumpriu muito bem essa tarefa em filmes como A Lista de Schindler, A Vida É Bela e A Escolha de Sofia. A encenação parte dos horrores nazistas para lançar um olhar para pautas contemporâneas.

Em umas das partes mais impactantes, uma mulher é estuprada por soldados nazistas e, como ela está fora da cena, só se ouve os gritos de desespero. “A violência contra a mulher é assustadora ainda hoje e, não bastasse o terror dos campos de concentrações, lá elas sofreram duas vezes”, observa. “Hilda fez de As Aves da Noite um grito contra a barbárie que usa o preconceito como ação política.”

Peça 'As Aves da Noite' foi escrita em 1968 e, agora, ganha direção de Hugo Coelho. Foto: Priscila Prade/Divulgação

Coelho lamenta que a onda de esperança verificada na virada deste século que prometia tempos melhores tenha sido soterrada tão rapidamente. Segundo ele, os debates em torno de um mundo melhor, de uma justiça mais equânime e de uma distribuição de renda legítima foram derrubados, e as elites mundiais radicalizaram suas posições de usar o Estado para poucos. “Eles conseguiram incutir na classe média o preconceito com o preto, o pobre, o LGBTQIAP+ e uma parte significativa dela comprou esse discurso, a mesma coisa que gerou e fortaleceu o nazismo”, observa.

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Com mais de quatro décadas de carreira, o encenador é responsável por, entre outros espetáculos, o monólogo O Monstro, protagonizado por Genézio de Barros, e a comédia Morte Acidental de um Anarquista, de Dario Fo, com o ator Dan Stulbach à frente do elenco.

O currículo diverso, que também conta com passagens pela televisão como editor e diretor, faz com que ele pense o teatro de uma maneira ampla e capaz de atingir parcelas significativas de espectadores. Por isso, o encenador ressalta a relevância de dramaturgias sobre temas universais, como a criada por Hilda, que reflitam a complexidade da humanidade permeada por poesia.

Em meio ao grande número de peças discursivas na cena atual, Coelho questiona o efeito deste tipo de texto junto ao público. “Você sai do teatro com uma avalanche de informações, mas não é afetado pela razão e pela sensibilidade, como em uma grande ação dramática”, declara. “O melhor lugar para o discurso é em uma palestra ou em um texto impresso porque se o teatro excede nesta característica, enquanto prosa, sobra pouco.”

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Serviço - As Aves da Noite

  • Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295, Lapa). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Até 2 de junho.
  • Teatro Arthur Azevedo (Avenida Paes de Barros, 955, Mooca). Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. De 6 a 16 de junho.
  • Teatro Paulo Eiró (Avenida Adolfo Pinheiro, 765, Santo Amaro). Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. De 20 a 30 de junho.
  • Grátis. Ingressos antecipados no sympla.com.br e nas bilheterias uma hora antes.
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