Embora pareça uma daquelas irresistíveis placas de vidente que prometem revelar o destino a crédulos clientes, O Futuro da América (tradução de Carlos Eduardo Lins da Silva, Donaldson M. Garschagen e Rosaura Eichenberg), do historiador de origem inglesa Simon Schama, pode decepcionar os que esperam descobrir no livro o devir americano. Afinal, trata-se apenas de um ensaio histórico com associações idiossincráticas. Schama fez sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1964. Conhece o país tanto quanto a obra de Rembrandt ou a obscura natureza de Robespierre, dois temas que também lhe são caros. Schama, que conversou com a reportagem do Estado sobre seu novo livro, é um obamista de primeira hora, que jamais escondeu sua simpatia pelo presidente Barack Obama, promotor, segundo ele, do reencontro da democracia americana com a moralidade. Historiadores mais cautelosos poderão considerar esse diagnóstico excessivamente prematuro e o uso da palavra moralidade um tanto fora de propósito numa nação que já teve presidentes contraditórios como Thomas Jefferson - ao mesmo tempo avesso à escravidão e defensor da inferioridade racial dos negros. Jefferson considerava o tráfico de escravos uma depravação moral. Muitos republicanos e democratas também, mas mantêm imigrantes ilegais atrás do fogão, pagando a eles míseros salários. Após a morte de Jefferson, os americanos tiveram de esperar 40 anos para ver a escravidão acabar - mesmo assim, ao custo do banho de sangue promovido pela Guerra Civil. Talvez tenham de esperar outros 40 para ver o futuro que Schama já vê hoje. "Obama é a retomada de democracia americana, eleito pelas minorias, e tem um programa consistente para a aliviar a crise econômica, especialmente no campo da saúde", diz ele, defendendo a ideia de que os EUA conseguirão manter a hegemonia política e econômica que conquistaram. Schama associa passado e futuro como se fossem um único tempo, no melhor estilo do físico Stephen Hawking. Na última palestra que fez no Brasil, em 2008, relacionou a Guernica de Picasso ao ataque às torres gêmeas, além de ver nas telas calcinadas do alemão Kiefer um aviso do apocalipse bíblico. Sua crença no artista visionário é imensa. No historiador como profeta, maior ainda. Schama tem vocação para babalaô da história. "É interessante essa sua observação, de que escrevo história política com os mesmos métodos que uso para contar a história da arte, porque é exatamente o que faço", admite ele, revelando que sempre parte de uma imagem-guia - no caso de O Futuro da América, o cemitério de Arlimngton - para escrever seus textos. O historiador, aliás, faz livros associados a séries de televisão - e ganha bem por isso, algo em torno de 3 milhões de libras por trabalho. O Futuro da América não é diferente. É a terceira experiência na área do catedrático. Numa época em que privado e público se confundem, Schama decifrou a pedra de Roseta da nova historiografia: cruzou a história geral americana com a particular - a da família Meigs, tradicionalmente ligada à academia militar de West Point, da qual saíram presidentes (Eisenhower) e "heróis" americanos (Patton, entre eles). A primeira parte de O Futuro da América (um terço do livro) é quase que integralmente dedicada a investigar como a história do militarismo americano foi marcada pelo sobrenome Meigs, que ajudou a trocar o idealismo jeffersoniano pelo pragmatismo hamiltoniano de West Point, sedimentando o espírito bélico americano - embora Schama, um apaixonado pelos EUA, insista em dizer que a cultura americana não é guerreira. A esse propósito, vale lembrar a frase preferida de Patton: "Deus me perdoe, mas eu amo a guerra." A família Meigs, proprietária de escravos e construtora do Capitólio de Washington, poderia dizer o mesmo, a crer nos relatos de outros historiadores e biógrafos. "Não a escolhi por capricho, mas por ser uma dinastia que acompanha a história da América desde a Guerra Civil", justifica Schama. Seu drama histórico, familiar, assim, é vendido como a história dos EUA, preparada para o formato de uma série de TV. Após investigar a origem da dicotômica filosofia americana - a América racional de Jefferson amalgamada às baionetas de Alexander Hamilton -, Schama afirma, na segunda parte de seu livro, que o futuro luminoso da América anunciado por Obama é apenas o passado americano. Ele vê nos eleitores do presidente a "negrona do Delta, filha de pastor", cantando um hino ensurdecedor. Barack foi eleito no interior da igrejas, defende Schama, e a igreja cristã foi a instituição progressista que determinou sua vitória. É difícil ver qualquer instituição religiosa digna desse adjetivo - a Igreja é e sempre foi essencialmente reacionária, ou não resistiria aos avanços da história. Schama discorda. Considera que os estrangeiros têm uma visão errada da Igreja cristã americana como um braço forte da ultradireita - mais ligada aos televangelistas, e não à igreja evangélica do passado, testemunha do processo embrionário dos movimentos pelos direitos civis. "Obama não foi eleito por sua cor de pele, mas por defender as minorias, confrontar os fundamentalistas e não fugir de discussões polêmicas como o aborto", argumenta. E como Obama pretende resgatar a reputação dos EUA após a intervenção no Iraque e episódios como o da prisão de Abu Ghraib e denúncias de tortura em Guantánamo? "Ele tem boa vontade e compromisso com a abertura, é muito sensível a respeito de problemas como esse, mas não pode admitir os fundamentalistas do Taleban, que negam voz às mulheres e perseguem as minorias." Obama e Michelle, lembra, são originários de uma classe social trabalhadora e cresceram graças à educação. Não vão abrir mão dela para fazer acordos espúrios com quem defende a ignorância. Otimista incurável, Schama espera ainda que os bilionários americanos do petróleo sigam todos o exemplo de T. Boone Pickens e se tornem "verdes" defensores da ecologia e dos moinhos de vento. Do jeito que são, é mais provável que fiquem, sim, verdes de raiva.
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