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Dr. Lonnie Smith resgata a última utopia da música

Organista foi destaque no final de semana com um show orgiástico, no qual tocou até com a língua nos teclados

Por Crítica Jotabê Medeiros
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As taças, as garrafas, os amendoins, as canetas: parecia que tudo que estava em cima das mesas do Citibank Hall, na noite de sexta-feira, estava dançando. Era a segunda noite da primeira edição do Bridgestone Music Festival. No centro da ação, atrás de um órgão (que parecia um púlpito), estava um sorridente senhor de barbas brancas, turbante e roupas de hindu, o astro da noite, Dr. Lonnie Smith, norte-americano de Buffalo, NY. Ele nem sempre tocou no teclado: teve um momento em que passou a tocar com os dedos no ar, como um mágico de gibi, e ainda assim as pessoas continuavam acompanhando com as cabeças e os ombros. Lonnie Smith é uma lenda da música, mas uma lenda que não percorreu os caminhos dos tapetes vermelhos e dos camarins estrelados. Um excêntrico não só na figura, ele passou quase batido em sua fase mais visionária, nos anos 60 e 70. Foi redescoberto quando o mundo passou a fazer a revisão da música híbrida que viria a dar no acid jazz, nos anos 1990. Sabíamos o que ele fez, mas não quem era ele. Mas tudo parecia ir se aclarando conforme Smith martelava o seu órgão Hammond B3. Aqueles três homens, o Soul Jazz Trio, estavam ali a serviço do mais refinado prazer. Com temas próprios ou em recombinações de músicas muito populares, era sempre eletrizante. O trio fez paródias de canções ultraconhecidas, como em Misty (de Johnny Mathis e Lonnie Mattress), ou o deboche em cima de You?re the Sunshine of My Life, com imitação de Stevie Wonder, ou You Sure Look Good to Me. Aí então Dr. Lonnie Smith pareceu entrar em transe, endoideceu, e tocou com a língua nos teclados, com as mãos nos pedais, e na madeira do instrumento. Seu órgão virou a guitarra incendiária que Jimi Hendrix empunhou em Woodstock. Para premiar de forma irrefutável o espectador, ele então redesenhou ao vivo um clássico do pop mundial, Come Together, dos Beatles. Tocou a música usando a voz como uma caixa de percussão, um beatbox cheio de ginga e tempero. A figura de cartum de Dr. Lonnie Smith, logo descobrimos, esconde um senso de humor desabrido e refinada ironia. Mais adiante, ele retorna aos originais com Willow Weep for Me. A banda, o Soul Jazz Trio, é espantosamente boa. Herlin Riley (o baterista que tocou com um palito de dentes rolando na boca), tem seu próprio quinteto, com o qual excursiona e grava discos. Em 2006 lançou, com Wynton Marsalis, o álbum Cream of the Crescent. Já o guitarrista Gregory Allan, que pouca gente conhece, foi uma grata surpresa. Qual é a chave da música de Dr. Lonnie Smith? Por que ele nos deixa tão felizes e intrigados com o encadeamento natural de sua música - ao mesmo tempo tão engrenada e orgiástica? Tudo tem groove, tudo tem balanço, é uma música curvilínea, acariciante. Mas não é de se quebrar a cabeça, é pura simplicidade. Ao contrário do jazz, Smith prescinde de solos individuais. Todos os músicos solam ao mesmo tempo, o que faz desse gênero inventado por Smith um dos mais generosos. Todos os solos são simultâneos, e nenhum se sobrepõe ao outro. É a realização funky de uma utopia artística.

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