O que é um museu? Uma disputa irrompe sobre uma nova definição

Desacordos refletem uma divisão mais ampla no mundo dos museus quanto a se esses organismos devem ser locais que exibem e pesquisam artefatos ou se envolvem ativamente em assuntos sociais e políticos

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Por Alex Marshall
Atualização:

LONDRES - Os museus vêm sofrendo uma crise de identidade.

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Responder à pergunta, “o que é um museu?" parece fácil para quem o visita, mas tem provocado furor no Conselho Internacional de Museus (ICOM na sigla em inglês), instituição sem fins lucrativos com sede em Paris que tem por fim representar os interesses dos museus de todo o mundo.

Nos últimos meses, várias pessoas que trabalhavam na comissão encarregada de rever a definição de museu pela entidade acabaram se demitindo, com acusações de “jogadas políticas ilícitas”. O presidente do Conselho também deixou o cargo.

Para alguns, esses desacordos refletem uma divisão mais ampla no mundo dos museus quanto a se esses organismos devem ser locais que exibem e pesquisam artefatos ou se envolvem ativamente em assuntos sociais e políticos.

Foto cedida pelo ICOM do encontro em Kyoto, Japão, em 2019, que deveria incluir uma votação sobre a nova definição do que é um museu. Um esforço internacional para atualizar a definição do que são museus encontrou renúncias e intrigas políticas. Foto: ICOM via The New York Times

‘É fácil caracterizar a celeuma como um grande frenesi sobre uma nova definição de museu”, disse Rick West, presidente do Autry National Center or the American West, em uma entrevista. “Mas isto é errado. O que ela realmente reflete são mudanças fundamentais, transformações radicais, que vêm tendo lugar nos museus”.

West que deixou a comissão em junho, disse que a questão real é se os museus devem ser apenas “casas de coleções e belas paradas nas viagens de turismo” ou se eles devem se envolver com a sociedade num sentido mais amplo.

A disputa remonta a 2016, quando o Conselho criou uma comissão para analisar se sua definição de museu precisava ser mudada. Essa definição, que teve poucas modificações desde os anos 1970, era clara: museus são instituições sem fins lucrativos “a serviço da sociedade”. Eles exibem “a herança tangível e intangível da humanidade e seu contexto, tendo por objetivo a educação, o estudo e o deleite da sociedade”.

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A definição é usada por organismos como a UNESCO, organização cultural das Nações Unidas, e por alguns governos.

A comissão passou meses conversando com cerca de 900 dos 40 mil membros, disse Jette Sandhal, diretora de museu dinamarquesa que liderou a comissão. Um pedido de propostas recebeu 269 sugestões de uma nova definição, disse ela, e isto deixou claro que muitos museus gostariam de uma atualização.

Houve uma forte disposição no sentido de os museus se envolverem mais com as preocupações urgentes e globais nos dias atuais”, como problemas ambientais ou desigualdade racial, disse ela. “São assuntos que temos de encarar se desejamos permanecer relevantes”.

O grupo apresentou cinco propostas para a diretoria executiva do Conselho, que então escolheu uma para debater com os membros. Uma definição com 99 palavras em dois parágrafos: “Museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos orientados para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros” com a finalidade de “contribuir para a dignidade humana a justiça social, a igualdade global e o bem-estar planetário”.

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A proposta não agradou alguns países, especialmente a França.

Em junho do ano passado, François Mairesse, professor de museologia na Sorbonne, em Paris, se demitiu da comissão. “Esta não é uma definição, mas uma declaração de valores em moda”, afirmou ele à The Art Newspaper. Juliette Raoul-Duval, que preside a filial francesa do ICOM, qualificou a definição de manifesto “ideológico”.

Mairesse, entrevistado via telefone, afirmou não ser contra os valores na definição proposta. Mas entende que eles pertencem a uma declaração sobre a missão do museu. “Você não pode encontrar isto num dicionário. Não explica o que um museu faz”.

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A definição deveria ser votada em uma reunião em Quioto, no Japão, em setembro passado, mas foi adiada por causa das inúmeras objeções.

Quando Israel e Irã concordaram com um adiamento, houve aplausos. “Foi um momento bastante sensível”, disse Klaus Staubermann, que dirige a filial germânica do ICOM, acrescentando ser esta a primeira vez que Irã e Israel concordaram com alguma coisa no âmbito da instituição.

Jette Sandhal, líder da comissão afirmou que conversou com governos e financiadores privados que disseram estar mais propensos a fornecer fundos para os museus com base na nova definição porque ela explica claramente o papel social dos museus.

Mas segundo Staubermann, ele e os membros do órgão na Alemanha se preocupam com tal definição e algumas pessoas temem que, caso não consigam mostrar que estão trabalhando com vistas à mudanças globais ou os valores mencionados, será difícil conseguir financiamento.

Em janeiro uma nova comissão foi formada na tentativa de criar uma definição que todos aceitem, mas os trabalhos avançaram muito pouco. Dois meses depois a filial francesa do ICOM realizou uma reunião que chamou “Que definição os Museus precisam?” e repetiu muitas objeções feitas, vindas especialmente de países europeus.

Burcak Madran, representante da Turquia, afirmou na reunião que termos políticos na definição proposta causariam problemas para os museus em países autoritários, e que até o termo “espaços polifônicos” é problemático.

“Há cinco anos abri um museu bastante polifônico com turcos, armênios, curdos e gregos no mesmo espaço”, afirmou ela. “Três meses depois, o museu foi fechado”.

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Sandhal disse compreender algumas das objeções, mas acha que o problema pode ser resolvido com a edição da definição proposta. Durante grande parte deste ano ela presidiu a nova comissão, mas sentiu que o trabalho vinha sendo dificultado. Em junho se demitiu.

“Perdi a fé de que o processo teria possibilidade de produzir resultados”, afirmou.

Sua renúncia foi logo seguida por três outros membros da comissão, e também da então presidente do Conselho, Suay Aksoy, acadêmica turca.

George Abungu, antigo diretor do Museu Nacional do Quênia, foi um dos que se demitiram da comissão. Numa entrevista por telefone ele disse que a definição proposta teve apoio generalizado dos museus na África que vêm trabalhando há décadas em assuntos como direitos humanos.

Ele acrescentou ter renunciado ao posto ao perceber que a definição “não era conveniente para os Ocidentais que querem continuar vivendo no passado, no século 19”.

Agora o Conselho vem lutando para sanar as consequências negativas daquela decisão.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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Pinacoteca. Foto: Werther Santana/ Estadão

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