Stravinski e Chanel: amor com estilo

Filme vai recriar romance que mudou os rumos da produção erudita e da moda

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Por João Marcos Coelho
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A música sempre foi arma de sedução sacada pelos compositores nos momentos mais decisivos de suas paixões amorosas. Foi assim com Hector Berlioz. Apaixonadíssimo por Harriet Smithson, medíocre atriz irlandesa integrante da primeira trupe inglesa a levar Shakespeare aos parisienses, compôs rapidinho um ciclo de canções sobre poemas irlandeses; e, não satisfeito, escreveu a Sinfonia Fantástica, obra-prima de 1830 construída em torno de um motivo de nome "idéia fixa". Inútil esclarecer que a idéia fixa atendia pelo nome de Harriet Smithson. Já nos "crazy twenties" do século passado - por sinal, tão loucos em Paris quanto em Nova York -, dois criadores em tudo diferentes também utilizaram seus dotes artísticos para seduzir objetos de paixão. O pianista "stride" Willie "The Lion" Smith, por exemplo, usava um anelão num dos dedos da mão direita - e improvisava blues de tal modo que a luz do cabaré incidisse sobre a pedra semipreciosa do anelão e atingisse poeticamente os olhos da potencial amada. Do outro lado do Atlântico, o francês Maurice Ravel e o húngaro Bela Bartok sentaram-se à mesma mesa para comemorar o primeiro recital da violinista Jelly Aranyi. Foi em 4 de abril de 1922. Fulminado pela beleza da compatriota de Bartok, Ravel, tímido, mas já com a língua meio solta em virtude do vinho, propôs um brinde: "À intenção de nossa amiga, que toca tão bem, vou escrever uma peça cuja dificuldade diabólica fará reviver a Hungria de meus sonhos e, já que se trata de uma obra para violino, por que não intitulá-la Tzigane?" Bartok azedou-se de vez com esse tratamento de "folclore tipo exportação" que Ravel fazia da música húngara; e, cá, entre nós, a bela Jelly teve críticas pouquíssimo favoráveis. Só a paixão mesmo para transformá-la em inspiração criadora. Restou, claro, o brilhante exercício de estilo que é Tzigane. Mas o exemplo mais impactante dessas viagens sonoras sentimentais - e ainda por cima invertido - é, sem dúvida, o fogoso caso de amor que tiveram, também na Paris dos anos 20, os dois maiores representantes de suas especialidades no século passado: a estilista Coco Chanel (1883-1971) e o compositor russo Igor Stravinski (1872- 1971). Você pode até duvidar, mas ao que tudo indica a guinada de Stravinski para o neoclassicismo foi parida nos luxuriantes lençóis de Chanel. O vertiginoso caso amoroso entre a criadora do vestido tubinho e do perfume Chanel nº 5 com o compositor da Sagração da Primavera não gerou filhos, mas rendeu uma importante seqüela artística. Stravinski saiu machucado da relação, num momento em que Coco Chanel "colecionava russos", segundo um cronista mundano parisiense da época. E purgou a dor-de-corno (Chanel trocou-o pelo sobrinho do czar Alexandre III, que assassinara o bruxo Raspútin na Rússia imperial) assimilando seus conceitos estilísticos: o retorno aos clássicos combinava com a agenda criativa de Chanel, que pregava simplicidade, clareza, precisão. Ou melhor, a estética de Chanel é que deve ter influenciado o compositor na direção do neoclassicismo. Chanel conquistou Stravinski, manteve o controle do caso todo o tempo, e ainda se deu ao luxo de influir de modo decisivo nos rumos de sua criação musical. O caso que quase destruiu a família do compositor é tema de um longa-metragem que começa a ser filmado em setembro pelo diretor William Friedkin (O Exorcista). O roteiro baseia-se numa versão romanceada do affair, escrita pelo inglês Chris Greenhalgh. Vai se chamar Coco and Igor, e terá nos papéis principais Marina Hands (As Invasões Bárbaras) e Mads Mikkelsen, o vilão de Cassino Royale. O filme, claro, não terá grandes compromissos com a verdade histórica, naturalmente, mas respeitará os anos-chave dessa relação: 1913, quando se conheceram; 1920, quando se amaram; e 1971, quando morreram (ela em 10 de janeiro, ele em 6 de abril). Mas a sacada de que Coco Chanel levou Stravinski a abraçar o neoclassicismo pode ser mais do que apenas uma frase de impacto. Quem pensa assim é Mary Davis, pesquisadora norte-americana que lançou há poucos meses o livro Classic Chic - Music, Fashion and Modernism, pela Editora da Universidade da Califórnia. "Música e moda eram dois elementos essenciais da elegância parisiense nos anos 10 e 20 do século passado", indica Davis em entrevista ao Estado. "Compositores e costureiros interagiram intensamente entre si e com os artistas visuais. O resultado foi um tipo de modernismo marcado pela moda." Mais do que isso, músicos e estilistas de moda circulavam nas mesmas rodas sociais. Eles se conheciam bem. Como e quando começou essa mestiçagem entre música e moda? Foram os Balés Russos, de Sergei Diaghilev, desembarcados em Paris em 1909, que iniciaram esse surpreendente casamento. Exemplos: Picasso fazia cenários para Jean Cocteau e Erik Satie; e, de outro, o cenógrafo dos Balés Russos, Leon Bakst, lançou em 1912 uma coleção de moda. "Eram vestidos para o dia-a-dia", diz Mary, "que evocavam as mais impactantes produções dos Balés Russos: o passado mitológico de L?Après-Midi d?Un Faune e o exotismo oriental de Schéhérazade. Ele deu a suas criações nomes como Isis e Niké." Chapéus, sapatos, luvas, vestidos - tudo foi desenhado por Bakst (1866-1924). Em 1913, Chanel inaugurou sua primeira loja em Paris. Com os seus chapéus e uma linha limitada de vestuário simples e funcional, fidelizou rapidamente uma clientela dedicada e desejosa de se libertar dos opressivos espartilhos. O seu prático sportswear tornou-se um enorme sucesso. E também esteve na platéia que assistiu à mais tumultuada estréia de uma obra musical no século 20, a Sagração da Primavera, música composta por Stravinski para os Balés Russos e dançada por Nijinsky. "A popularidade, glamour e altíssimos cachês dos bailarinos russos", diz Mary Davis, "foram cruciais para consolidar o vínculo entre moda e música, e ajudaram a legitimar a discussão de moda na imprensa musical séria." A simplicidade que Chanel implantou revolucionariamente na moda diária entre 1913 e 1920 - conseqüência final da democratização da moda, cuja origem se pode datar da invenção da máquina de costura em 1860 - se refletiria em 1920 na música de Stravinski. "Chanel significa pobreza de luxo", reagiu o celebrado estilista Poiret à frase de Chanel "a moda tem de vir das ruas". De seu lado, Stravinski abandona os exotismos à la russa e mergulha seletivamente no século 18, sobretudo, para criar obras neoclássicas, límpidas, mais aveludadas ao ouvido comum. A amizade com Diaghilev e sua mecenas Misia Seri introduziu Chanel no mundo da arte logo após o término da 1ª Guerra Mundial, em 1918. E ela teve de pagar o preço do noviciado: financiou o retorno dos Balés Russos de Diaghilev com uma remontagem da Sagração da Primavera de 1913. A decisão foi tomada antes do affair, mas quando ela assinou o generoso cheque, garante Mary Davis, os dois já estavam de caso - estávamos no segundo ano-chave, 1920. Não existem cartas nem documentos que revelem detalhes dessa paixão. É curioso, já que ambos adoravam a chamada self promotion. O fato é que Chanel deu uma entrevista reveladora a Paul Morand em 1946, só publicada 30 anos depois, quando ambos já haviam morrido. Ela relembra que "ele era jovem e tímido", inexperiente a ponto de ter revelado à sua mulher o caso Chanel. "Ela sabe que eu te amo", disse Stravinski candidamente a Chanel, que queria casar-se com ela de todo jeito. A estilista, porém, optou por oferecer-lhe apenas uma "grande amizade" dali em diante. No monólogo Mademoiselle Chanel, um grande sucesso de Marília Pêra, Maria Adelaide Amaral sintetiza assim o caso: "Stravinski foi uma paixão musical à primeira vista! Só houve um contratempo: ele se apaixonou por mim de verdade, o que ocasionou um drama terrível, porque eu não tinha nada para lhe oferecer, a não ser uma grande amizade. Claro, fomos amantes durante algum tempo, mas isso não ia alterar meus sentimentos. Admirava-o como artista, gostava da companhia dele, e por que não? Era um homem delicado, um anjo - ao contrário de Picasso, que era um demônio!" O fato é que os frutos criativos desse romance tiveram toques de genialidade. De um lado, Coco lançou "o" perfume do século 20, Chanel nº 5. "Ela foi a primeira", conta Mary Davis, "a chamar um perfume com seu nome; e em vez de extratos de flores naturais, uma mistura de 80 aldeídos sintéticos produzia um aroma tão diferente que os especialistas o chamaram de ?abstrato?, tomando emprestado o termo que se aplicava à vanguarda visual naquela década." Stravinski, por sua vez, praticou o chamado neoclassicismo musical pelas três décadas seguintes, gerando inúmeras obras-primas que o consolidaram como o mais importante compositor do século 20. O pontapé inicial foi dado ainda em 1920, com Pulcinella, Sinfonia para Instrumentos de Sopro e Concertino; e prosseguiu com As Bodas, Mavra, o Concerto para Piano e Sopros, Oedipus Rex, Apollon Musagete, O Beijo da Fada, a Sinfonia dos Salmos, Persephone, Jogo de Cartas até sua suprema criação neoclássica, a ópera A Vida de um Libertino (The Rake?s Progress), em 1951, que ousa revisitar (com sucesso) o universo musical e lírico de Mozart. De fato, a paixão pode não ter durado, mas aquele encontro deixou geniais seqüelas de ambos os lados. O derradeiro ano-chave para ambos foi 1971, quando morreram. Afinal, como disse com extrema felicidade o fotógrafo de moda Cecil Breaton, "a moda, o efêmero, compartilha o último sorriso com a arte, a eterna".

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