Foi no dia 8 de outubro de 1998 que José Saramago se tornou o primeiro - e até agora o único - português a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Um livro lançado hoje em Coimbra relembra o impacto da notícia no autor de Ensaio sobre a Cegueira, bem como registra tudo o que ocorreu naquele 1998. Trata-se de O Último Caderno de Lanzarote - O Diário do Ano do Nobel. Está sendo lançado, também, Um País Levantado em Alegria, em que Ricardo Viel conta os bastidores dos dias que antecederam e que se seguiram ao Nobel.
Saramago (1922-2010) estava sozinho, no saguão do aeroporto de Frankfurt, aguardando o voo que o levaria de volta para casa depois de participar da Feira do Livro, quando soube que tinha ganhado o Nobel. Por orientação de seu editor, deu meia volta e retornou ao evento, dessa vez, como a grande estrela. "Estava ali sozinho, um senhor com a sua gabardina e a sua malinha, com a qual tinha ido a Frankfurt por dois dias para uma conferência, e voltava um senhor cuja vida tinha mudado totalmente nesse instante", disse o escritor à época.
Dois meses depois, no dia 10 de dezembro, José Saramago participou de um banquete na Academia Sueca, em Estocolmo, em sua homenagem. No discurso proferido naquele dia, optou por falar sobre direitos humanos.
Leia o discurso de José Saramago ao ganhar o Prêmio Nobel de Literatura
Cumpriram-se hoje exactamente 50 anos sobre a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não têm faltado comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, como a atenção se cansa quando as circunstâncias lhe pedem que se ocupe de assuntos sérios, não é arriscado prever que o interesse público por esta questão comece a diminuir já a partir de amanhã. Nada tenho contra esses actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que diga aqui umas quantas mais.
Neste meio século não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Pensamos que nenhuns direitos humanos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem e que não é de esperar que os governos façam nos próximos 50 anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.
Não esqueci os agradecimentos. Em Frankfurt, no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que pronunciei foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos torno a agradecer. E agora também aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de hoje: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam portanto.