Clássico do Dia: 'Selva Trágica' e a representação de um mundo que se assemelha ao inferno

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que Roberto Farias fez em 1963, depois do sucesso de 'O Assalto no Trem Pagador'

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Quando o assunto é Roberto Farias, a maioria da crítica lembra o início do cineasta na Atlândia, sua passagem pela chanchada (Rico Ri à Toa) e termina citando O Assalto ao Trem Pagador, de 1962, como sua obra-prima. Há controvérsia. Farias realmente começou na chanchada, deu uma guinada para o policial de cunho social com Cidade Ameaçada, de 1960. Voltou à chanchada com Um Candango na Belacap, ao qual se seguiu, aí sim, O Assalto. Baseado num caso célebre – o assalto ao trem de pagamentos da Estrada de Ferro Central do Brasil, em junho de 1960 -, o filme se destaca não só pelo virtuosismo técnico e narrativo (é muito bem feito), mas também pela voltagem crítica. Pela meticulosidade na execução do plano, durante um tempo a polícia do Rio chegou a acreditar que teria sido uma quadrilha internacional. Com base no roteiro que coescreveu com Luiz Carlos Barreto e Alinor Azevedo, Farias estrutura o relato na oposição entre o morro e o asfalto, representada pelos personagens Tião Medonho e Grilo.

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O primeiro era interpretado por Eliezer Gomes, escolhido num concurso. O segundo, pelo irmão do diretor, com quem ele já fizera Cidade Ameaçada, Reginaldo Faria. No alvorecer do Cinema Novo, O Assalto ao Trem Pagador terminou integrado ao movimento. Seria sua vertente urbana, quase em oposição ao cinema do sertão, que logo ganharia os festivais internacionais. Farias foi contemplado com prêmios nacionais, entre eles o Saci, outorgado pelo Estado. Foi um grande sucesso de público.

Dois anos depois, surgiu Selva Trágica, mais uma parceria de Roberto com o irmão Reginaldo. O filme baseia-se no romance de Hernani Donato. Compõe um bloco de notável coerência com Cidade e O Assalto, como se tivessem sido concebidos como uma trilogia. Até por sua formação no estúdio, Farias fazia cinema comercial como opção estética. Mas, talvez pelas circunstâncias – Selva Trágica chegou às salas no ano do golpe militar -, ao contrário dos anteriores, não fez grande sucesso de público e até a crítica foi reticente.

Cena de 'Selva Trágica' Foto: R.F.Farias

Há um momento definidor no filme. A câmera – fotografia em preto e branco de José Rosa - está colocada no chão e acompanha o movimento de um homem que reúne todas as suas forças para levantar a carga que o esmaga. Esse homem é um x anga-yí. Trabalha na extração da erva mate, na fronteira paraguaia. O filme, como o livro de Donato, cria um mundo que se assemelha ao inferno. O trabalho dos homens é escravo. As mulheres são prostituídas à força. Farias mostra um mundo fechado. A plantação tem a sua polícia, a venda, na qual o trabalhador se endivida, e até o bordel, com as prostitutas. Uma hora de sexo custa caro, mas elas não ganham. Todo o dinheiro que gira tem por objetivo aviltar as pessoas. Todo mundo está sempre devendo.

Essa construção dramática de um mundo (im)perfeito permanece única, não se assemelha a nada no cinema brasileiro. Talvez tenha paralelo somente na minissérie da Globo, Supermax, como o reality show simulado numa penitenciária de segurança máxima, mas, nesse caso, com menos importância atribuída ao sexo e ao dinheiro. Na trama de Selva Trágica, o escravo se apaixona pela trabalhadora do sexo, mas ela já é objeto de desejo dos brutos do agrupamento. Resolvem fugir, e se tornam alvos de uma caçada humana. Reginaldo Faria é o protagonista e ela é uma das mulheres mais belas que já fizeram cinema no Brasil, uma beleza agreste, Rejane Medeiros. A relação de Reginaldo e Rejane, realçada pelos movimentos mais líricos da trilha de Luiz Bonfá, tem algo a ver com o conceito do roteiro que Dalton Trumbo escreveu para o astro-produtor Kirk Douglas - basta lembrar de Spartacus e Varínia, no épico de 1960 que leva o nome do primeiro. Selva Trágica tem um recorte mais intimista, mas não é menos forte. Os temas sociais, o realismo à flor da pele, a relação entre trabalho e dinheiro, e a câmera dirigida basicamente para o corpo dos atores, tudo - o amor e a violência – aproxima Farias do cinema de Luchino Visconti, naquilo que tem de mais politizado, a (marxista) luta de classes.

O diretor tinha sentimentos ambivalentes em relação a Selva Trágica. Dizia que perdeu muito dinheiro, endividou-se e, em tempos de muita censura, aderiu a um cinema mais leve, a comédia Toda Nudez Tem Um Pai Que É Uma Fera e a trilogia com Roberto Carlos, antes de voltar à linha de frente com Pra Frente Brasil, que tanta polêmica provocou no começo dos anos 1980, ainda durante a ditadura. Ficou, para ele, a lembrança de um filme que foi duro, difícil, no sentido de que a filmagem em locação, na selva, foi desgastante. Roberto Farias morreu em maio de 2018, há quase dois anos. Já é mais do que tempo que Selva Trágica obtenha reconhecimento como o verdadeiro clássico do cinema brasileiro que é.

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