Clássico do Dia: 'Triângulo Feminino' aborda a homossexualidade com uma truculência sem paralelo

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este longa de Robert Aldrich que escandalizou Hollywood

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Vale lembrar Michel Maheo, no seu volume sobre Robert Aldrich na Coleção Rivages/Cinéma. Quando os franceses – Claude Chabrol e François Truffaut – descobriram o western Vera Cruz e o alçaram à condição de obra-prima, a chacota foi grande por parte da crítica dos EUA. O filme não seria mais que um divertimento – nem um western sério. Nascido numa família de banqueiros de Rhode Island, nada predispunha o jovem Bob a seguir carreira no cinema, mas ele seguiu. Foi asssistente de Jean Renoir, Charles Chaplin, Joseph Losey. Estreou em 1953 e, no biênio 54/55, emendou uma série de filmes de gênero – westerns (O Último Bravo e Vera Cruz), guerra (Morte sem Glória), noir (A Morte Num Beijo), além de uma incursão pelos bastidores de Hollywood (A Grande Chantagem) – quje imediatamrente fizeram seu nome.

Tão rápida quanto subira, sua estrela eclipsou-se. Tornou-se ziguezagueante no fim dos anos 1950. Parecia acabado, na verdade estava só (re)começando. O sucesso de público de O Que Aconteceu a Baby Jane?, de 1962, e Os Doze Condenados, de 66, permitiu-lhe criar o próprio estúdio. E Aldrich começou a refazer seus clássicos da década anterior, só que mais espetaculares. Guerra, gângsteres, bastidores de Hollywood. Em 1954, a cena de duas mulheres beijando-se na boca provovou alvoroço na indústria e Alerta erm Singapura foi cortado barbaramente. Quinze anos mais tarde, Aldrich vingou-se. Dono do seu estúdio, foi fundo no relacionamento íntimo entre mulheres. Muito mais que beijos – The Killing of Sister George/Triângulo Feminino aborda a homossexualidade com uma truculência sem paralelo na época.

Cena do filme 'Triângulo Feminino' Foto: The Associates & Aldrich Company

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Aldrich e o cinema de gênero – all men (Morte sem Glória, O Voo do Fênix, Os Doze Condenados), all women (Baby Jane, Com a Maldade na Alma, Triângulo Feminino). Tragicomédia nos limites da farsa, a história baseia-se em uma peça de Frank Marcus que atraíra o público em Londres e Nova York. Imediatamente antes Aldrich fizera A Lenda de Lilah Clare, que não deixa de ser o seu Vertigo/Um Corpo Que Cai, com a própria Kim Novak em papel duplo e tranposto para os bastidores do cinema, segundo a fórmula do filme dentro do filme. Agora investiga os bastidorees da TV. June Buckridge é uma estrela da TV inglesa, na qual interpreta uma série recordista de público. Faz uma religiosa, a Irmã George e o problema é que June, na vida, não tem meias-medidas. Bebe demais, é lésbica assumida. Envolve-se em confusão num pub, a polícia intervém, o caso ameaça estourar na mídia - nesses quase 50 anos decorridos desde então, o comportamentyo de June com certeza teria viralizado nas redes sociais.

A Igreja reclama do mau comportamento de Sister George e a diretora da cadeia de TV, Mercy Croft, leva seu ultimato a June. Anuncia que, para evitar novos escândalos, a Irmã George morrerá nos próximos capítulos. Na casa, ela copnhece a jovem companheira da velha estrela, Alice. A título de compensaçãs para Junme, oferece-lhe outro papel – o de dubladora da vaca Clarabelle em outra série. June surta, enche a cara até cair e chega em casa para pegar Mercy e Alice na cama. Na confusão que se segue, Alice parte com a executiva e June, agora solitária, encara o futuro incerto. Adentra o estúdio deserto e, num estado lastimável, começa a mugir – Muuu! - como preparativo para a próxima personagem.

Triângulo Feminino é contemporâneo de Perdidos na Noite/Midnight Cowboy, de John Schlesinger, que venceu os principais Oscars de 1969, mas o foco na homossexualidade dos dois filmes não poderia ser mais diferente. O de Aldrich não tem nada de elusivo e o filme por pouco não foi confinado ao gueto das produções pornográficas (X Rated). O trio Alice/June/Mercy, ou Susannah York/Beryl Reid/Coral Browne, antecipa sem pudor o sexo que invadiria as telas por volta de 1970 – Apenas Uma Mulher, Ânsia de Amar, Último Tango em Paris. Para completar, a pintura da TV, com a pressão da audiência e dos anunciantes expunha uma mídia que, ao longo dos anos 1950 e 60, vinha crescendo na preferência do público. Mais alguns anos e Sidney Lumet e o roteirista Paddy Chayefski fariam Rede de Intrigas, cuja versão dos bastidores da TV, embora avalizada pelo Oscar, não consegue ir mais fundo que a de Aldrich.

Para ele, esse retrato de mulheres empoderadas foi liberador e, num filme posterior, Resgate de Uma Vida, adaptado de James Hadley Chase, pintou um retrato de mãe criminosa – Ma Grissom, rene Dailey – como poucas vistas no cinema. O problema, e foi realmente um problema, é que a ousadia desses dois filmes assustou a moralista plateia norte-americana. Aldrich comprometeu-se ao não recuperar o dinheiro investido na produção, mas sua manreira de filmar homens e mulheres abriu um precedente. Como autor, nunca se prendeu aos códigos de comportamento dos gêneros humanos. Desafiou a indústria – com a violência de Os Doze Condenados e o sexo de Triângulo Feminino -, fez história por isso, e cavou seu espaço no panteão dos grandes. Aldrich morreu em 5 de dezembro de 1983, aos 65 anos.

Onde assistir:

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  • À venda em DVD

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