Crítica: Em ‘A Mãe’, Marcélia Cartaxo se transforma numa leoa em busca do filho

Filme dirigido por Cristiano Burlan conta com a força interpretativa da atriz; veja o trailer

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio

O título seco - A Mãe - remete, talvez de maneira inconsciente, às obras de Máximo Gorki e de Bertolt Brecht. De qualquer forma, no filme de Cristiano Burlan, Maria, a mãe interpretada por Marcélia Cartaxo, incorpora em parte as ideias rebeldes do filho, como em Gorki no romance A Mãe. Diferentemente da peça de Brecht, Mãe Coragem e seus Filhos, ela não vive dos restos de uma guerra, mas vive a própria guerra. E esta leva-lhe o filho único. A guerra atende pelo nome de Brasil e Maria, vinda do interior da Paraíba, mora numa zona de conflito na periferia paulistana em companhia do filho Valdo (Dunstin Farias).

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O filme começa por apresentar a relação entre mãe e filho. Dormem no mesmo quarto, na casinha modesta de periferia. Ela sai para trabalhar no centro da cidade, ele encontra um amigo, pega seu skate e os dois saem pelas ruas do bairro em busca do que fazer.

Há um interregno narrativo aqui. A câmera acompanha Maria no centro de São Paulo, vendendo óculos de grife (falsificados) para os passantes. Chega o rapa, ela tem de fugir para salvar a mercadoria. É uma formiguinha no ameaçador turbilhão da cidade. É também o primeiro encontro da personagem com as “autoridades”, esses funcionários que, em tese, mas apenas em tese, deveriam disciplinar a convivência social na metrópole. Outros encontros desse tipo virão.


Cena do filme A Mãe, dirigido por Cristiano Burlan e protagonizado por Marcélia Cartaxo Foto: Bela Filmes


O fato é que Valdo não volta à casa. Maria o procura por toda parte. Na escola, no hospital, na morgue. Mães sabem que, quando os filhos não aparecem, pode-se pensar no pior.

E é agora, na adversidade, de mulher miúda e assustadiça que foge da fiscalização da prefeitura, a mãe transforma-se numa leoa em busca do filho. Capaz de enfrentar de traficantes a tiras da PM e delegados de polícia, sem papas na língua e sem medo porque, desconfia, o pior já lhe aconteceu e nada mais pode atingi-la com tanta intensidade quanto o desaparecimento do filho. Maria transforma-se em Mãe Coragem.

Força interpretativa

Aqui entra em cena a força interpretativa de Marcélia Cartaxo, atriz paraibana que tem, em A Mãe, um papel à altura da personagem Macabéa, que viveu ainda mocinha em A Hora da Estrela, de Suzana Amaral, e lhe valeu um Urso de Prata no Festival de Berlim. Ou a madura bailarina Pacarrete, no filme homônimo de Allan Deberton. Em ambos, Marcélia torna-se comovente porque se refugia numa ingenuidade que beira à pureza absoluta, aquela que tem como paradigma o príncipe Michkin em O Idiota, de Dostoiévski. Num mundo sórdido, os puros tornam-se santos. Agigantam-se e seu destino é o sacrifício.

Já em A Mãe, o sofrimento leva a personagem à luta, ainda que quixotesca. Enfrenta de policiais ao dono do tráfico no bairro. Todos querem que ela se cale. Ela exige apenas saber o destino do filho. Se estiver morto, que seu corpo lhe seja entregue e tenha funeral digno, como uma Antígona contemporânea e vivendo em um país desesperado. Encontra-se com uma ativista (Helena Ignês), que evoca seu próprio filho desaparecido na ditadura. Encontra-se com uma ativista (real) dos direitos humanos, Débora Silva, que representa as Mães de Maio, em busca de justiça para os filhos mortos em operações policiais.

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As duas passagens se enlaçam para lembrar a cicatriz histórica da ditadura e como, findo o período autoritário, a democracia não se completou de todo. Ao menos para a grande maioria da população brasileira. Quem vive na periferia sabe. Esse desenvolvimento dá caráter político ao drama pessoal de Maria e seu filho. Tira o filme do pessoal e coloca-o na dimensão coletiva.

A radiografia da vida na periferia é de autoria de alguém que conhece o ambiente e já sofreu, em sua própria carne, os efeitos da violência - Cristiano Burlan é diretor do potente documentário de título auto-explicativo Mataram Meu Irmão.

O refinamento cinematográfico de algumas passagens - como a não-linearidade temporal, planos sequência em que passado e presente se abraçam - não se resumem a demonstrações de virtuosismo, ou mero esteticismo. Ajustam-se à narrativa e sugam o espectador para a voragem da tragédia social brasileira.

Cotação: Ótimo

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