Filme ‘Malês’, sobre o levante baiano, é um grito de liberdade, diz o diretor Antonio Pitanga

Longa é um projeto antigo do cineasta que inclui os filhos Camila e Rocco e deve estrear em 2024

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Foi depois de ver Amistad (1997), o épico contra a escravidão de Steven Spielberg, que o baiano Antonio Pitanga decidiu tornar realidade um papo que teve com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), nos sets de A Idade da Terra (1980): transformar em filme o levante de 1835, chamado de A Revolta dos Malês, assumindo a direção. Desde menino, em Salvador, o ator ouve falar sobre a insurreição que descreve poeticamente para o Estadão como sendo um pleito pela liberdade: “Na Bahia, todos nós ouvimos o relato sobre o grupo de negros letrados da África islâmica, que dominavam a álgebra e a física, e se voltam contra opressores brancos que os escravizavam, unindo forças com os negros do candomblé. É épico. É Pantera Negra puro, só que no Brasil”.

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Demorou para que tal papo com Glauber se concretizasse, mas, hoje, aos 84 anos, o ator acabou de filmar o roteiro escrito por Manuela Dias (autora da novela Amor de Mãe), sobre o movimento contra os escravocratas do Império, tendo sua filha, Camila Pitanga, e o filho, Rocco, num elenco estelar. Chamado Malês, o longa - o segundo de Antonio como diretor - é produzido por Flávio Tambellini e teve uma parte rodada em Maricá (RJ). A estreia será em maio de 2024.


Filme Malês, com Samira Carvalho e Rocco Pitanga  Foto: Vantoen Pereira Júnior


“Glauber me disse que ia me produzir, trazendo o projeto para engajar todas as cabeças do cinema baiano na recriação da luta dos malês contra a escravidão”, diz Pitanga. “Tenho uma carta enviada a um historiador, em 1986, demonstrando o meu interesse em fazer esse filme. Olha quanto tempo faz! Sem conseguir rodá-lo, segui atuando e fui trabalhando em vários filmes. Numa pausa, fui assistir a Amistad, no qual vi um branco contar a nossa história. O que se passou no caso dos malês foi mais forte do que aquela história do Amistad. Nessa nossa revolta baiana, há um grito da independência de um povo, o povo negro. Depois der ver o filme do Spielberg, decidi correr atrás da minha produção com afinco. Foram 25 anos. Isso porque, no Brasil, bater nas portas oficiais pra contar a história negra é algo difícil.”

Antes de Malês, Antonio rodou um único filme, Na Boca do Mundo, lançado em 1978. Em sua estreia, ele foi elogiado calorosamente, sobretudo pela imprensa francesa, que via conexões entre o olhar sociológico de Pitanga e a obra literária do escritor americano James Baldwin (1924-1987), autor de Notas de um Filho Nativo (1955). “Em 1964, Cannes mostrou meu rosto na telona em Ganga Zumba e, tempos depois, a (revista) Cahiers du Cinéma veio falar do meu primeiro filme como diretor. Mas era um longa em que eu estava olhando adiante, ao narrar o encontro entre três criaturas que discutiam qual era a sua importância no universo. E eu ainda atuava nele. Estou atuando no Malês também. Meu personagem, Licutan, foi um dos integrantes do levante e seu crânio está hoje em Harvard. Mas deveria estar no Brasil”, garante.

Berço

“Por isso, filmo essa história agora, no berço baiano do levante, a cidade de Cachoeira, não muito longe de Salvador, embalado naquilo que Vinicius de Moraes dizia: ‘Meu tempo é hoje’. Coerente com as lutas de hoje, não faço um filme sobre negros vitimados. Mas sobre um coletivo, um coletivo heroico. Os escravagistas brancos fecharam a boca do nosso povo. Esse filme é pensado para ser um grito do que está entalado na garganta”, define Pitanga, que tem Pedro Farkas na direção de fotografia, com trilha sonora de Carlinhos Brown e Antonio Pinto.


O ator Antonio Pitanga dirige o filme 'Malês' Foto: Vantoen Pereira Júnior


Além de Camila e Rocco, estão no elenco Wilson Rabelo, Bukassa Kabengele, Rodrigo dos Santos, Patricia Pillar, Samira Carvalho, Heraldo de Deus, Thiago Justino e Nando Cunha. O enredo de Manuela Dias recria a Bahia do século 19, em meados de 1830, quando uma rebelião começou a ser arquitetada por africanos muçulmanos, chamados de malês. A revolta se passa no final do Ramadã, mês do calendário islâmico em que o jejum é uma forma de celebrar Alá. Após o fracasso da revolta, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra os negros aumentou. Nas filmagens, Pitanga divide seu tempo na direção com seu trabalho de ator, refinando a figura de Pacífico Licutan, um dos líderes do levante, que defendia a importância da participação de diferentes tribos e religiões para o sucesso da revolta e o fim da escravidão.

Poder feminino

“Muita gente vai me criticar quando o filme sair, por eu dar às mulheres um papel de destaque quando, naquela época, elas não tinham voz. Mas não me interessa ficar na zona de conforto da História. Faço um filme de negras, negres e negros. Preciso realçar o empoderamento feminino. Que mulher vai querer que seu bebê nasça escravo?”, reforça Pitanga, que espera ter um primeiro corte do filme, já montado, em setembro, para tentar ir a festivais internacionais.

Coerente com as lutas de hoje, não faço um filme sobre negros vitimados. Mas sobre um coletivo, um coletivo heroico

Antonio Pitanga

Em 2020, ele correu o mundo com Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria, assumindo um papel de protagonista. “O longa do João é primo-irmão de Malês por lançar luz contra a exploração do corpo do negro, a partir de um homem que usa seus objetos guardados contra a opressão”, afirma Pitanga. “Casa de Antiguidades falava do silêncio que nos ronda. Malês é o grito. O grito de que estamos vivos e somos fortes.”

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