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'King Kong en Asunción', de Camilo Cavalcante, traz narração em guarani

Filme de Camilo Cavalcante aborda rastro de afeto na vida de um matador de aluguel

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Mesmo sem nenhum filme novo de Kleber Mendonça Filho, o cinema pernambucano não cessa de surpreender, e maravilhar, neste 2021. Acqua Movie, de Lírio Ferreira, Piedade, de Cláudio Assis, e agora King Kong en Asunción, de Camilo Cavalcanti. O filme de Camilo começou a nascer em 2007, cerca de sete anos antes de História da Eternidade, que lhe deu projeção. Tente ler as críticas de História – não há uma que não faça referência à dança do gay interpretado por Irandhir Santos. É a chave com que muita gente entra na obra. 

Cena do filme 'King Kong en Asunción', de Camilo Cavalcante Foto: Arthouse/Divulgação

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Comparativamente, você vai ler que Camilo frustra expectativas com seu novo personagem. King Kong, que estreou na quinta, 2, é sobre um matador de aluguel, mas Andrade Júnior, que faz o papel, está longe de seguir o modelo hollywoodiano. É idoso, obeso, o Velho. É isso que frustra? Depende do olhar – o Velho é a própria razão de ser do filme. Tudo começou com uma performance do ator, num festival de cinema. Camilo viu ali o seu gorila, o seu King Kong. O filme começou a tomar forma. King Kong na estrada. “Para mim era uma coisa periférica, tinha a ver com latinidade.” O Velho carrega a violência no DNA. “Ficou claro para mim que ele deveria carregar a dor e o sangue da colonização.” 

De cara, o texto em guarani informa que a vida é percurso, e o Velho, que executa uma missão na Bolívia, ruma ao Paraguai, onde espera encontrar a filha, que nunca conheceu e vive com a mulher que ele talvez mais tenha amado. Reencontra o amigo, o Barbeiro, interpretado por Fernando Teixeira, de Aquarius. A narração entrega – “Essa também é uma história de ruína”. A ruína humana que é o próprio Velho. Uma vida inteira pautada pelo ódio, numa trajetória que começa como história de vingança na Zona da Mata, em Pernambuco. Mas o ódio não é o objetivo final. Existem resquícios de amizade, de afeto.

Cena do filme 'King Kong en Asunción', de Camilo Cavalcante Foto: Arthouse/Divulgação

Nascido em 2007, viabilizado em 2015, filmado em 2017 e estreado em 2019. Em nenhum momento, Camilo pensava que o filme poderia vir a público num período como a era Bolsonaro, “com todo esse ódio”. Foi um filme feito com pouquíssimo dinheiro – como História da Eternidade. “Não me queixo. Tenho independência e a falta de dinheiro me estimula a usar a criatividade para compensar limitações.” Filmar em três países foi um desafio. “Foi preciso um trabalho logístico para cruzar fronteiras e integrar artistas e técnicos de diferentes nacionalidades. Sofremos todos os mesmos males, a mesma opressão política. O Brasil tem a mania de olhar para a Europa, os EUA. Precisamos olhar mais para dentro, para nossos vizinhos. O que precisamos é de mais integração continental.”

Desde o início, o roteiro previa uma narrativa em off que seria feita por Andrade Júnior. “Esses offs ajudaram no tom dramático, mas, antes mesmo de terminar a filmagem, eu já sabia que não ia usar a voz dele. Uma voz simbólica, falando em guarani, daria mais potência ao relato e ainda seria mais poética, como se fosse a morte falando.” Camilo encomendou esse texto à escritora gaúcha Natália Borges Polesso. Verteu-o para o guarani e quem lê é a atriz Ana Ivanova, de Las Herederas. De Assunção, ela conta que foi uma de suas experiências mais intensas como atriz de teatro e cinema. 

“O texto é muito bonito, muito forte, mas há uma diferença entre o português, o espanhol e o guarani. Vivemos no século da imagem e as próprias palavras estão conectadas com imagens no nosso inconsciente. Os povos originários não fazem essas construções linguísticas, tudo é muito mais simples e direto, a conexão com o mundo, a natureza. Discutimos muito como seria a narração, e finalmente, quando fui ao Recife para gravar, já sabia como seria.” Ana reflete – “Existem camadas, a literária é muito forte, mas tem também a sonora, a imagética e até a política, que fazem dessa narração algo muito especial”. Ana promove oficinas – talleres de narración – com o objetivo de integrar pessoas, principalmente jovens, que são periféricos na sociedade paraguaia. Tudo a ver com a intenção de Camilo. 

O Velho não virou esse monstro assassino por acaso. Um episódio da infância ajuda a explicar tudo o que se passou na vida dele. A infância e a velhice se ligam, duas pontas da mesma linha representando o que está por vir e o que foi alcançado, ou perdido. Em 2019, Camilo havia acabado a montagem quando veio o choque – seu ator morreu. “Andrade não conseguiu ver o filme pronto, mas sua dedicação está presente em cada cena.” Em Gramado, no ano passado, o longa venceu os prêmios de melhor filme do júri oficial e do popular. Venceu também, postumamente, o Kikito de melhor ator e dividiu o prêmio de trilha com Todos os Mortos, de Caetano Gotardo. Na trilha tem Mercedes Sosa, Volver a los 17. Em História da Eternidade, Mercedes já cantava Alfonsina y El Mar.

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Cena do filme 'King Kong en Asunción', de Camilo Cavalcante Foto: Arthouse/Divulgação
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