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'Onde Andará Dulce Veiga' retoma diálogo com o noir

Filme traz romance de Caio Fernando Abreu para universo pós-moderno do diretor Guilherme de Almeida Prado

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Antes de falar do filme em si é preciso relembrar sua origem. Ela está numa crônica que Caio Fernando Abreu publicou em 1987 no Caderno 2, chamada Onde Andará Lyris Castellani?, sobre uma atriz que fizera dois ou três filmes nos anos 60 e havia desaparecido. Guilherme de Almeida Prado procurou Caio e lhe propôs escreverem um roteiro com esse tema em mente. Caio respondeu que tinha um romance, inacabado, que começara uns três anos antes, chamado Dulce Veiga e que tratava do assunto, sob outro prisma.   Veja também:  Trailer de 'Onde Andará Dulce Veiga?'      Começaram a desenvolver o argumento, segundo Guilherme a partir da própria experiência jornalística de Caio. Seria a história de um repórter que escreve a respeito de Dulce Veiga e, por uma série de circunstâncias, vê-se obrigado a descobrir seu paradeiro. Mas Caio não tinha tempo para desenvolver o roteiro e Guilherme acabou escrevendo o texto. Deixava as páginas datilografadas na casa de Caio, este mexia na história, e acrescentava principalmente os diálogos.   O roteiro ficou pronto e Caio resolveu terminar o livro. Ficou combinado que Guilherme assinaria o roteiro e Caio, o romance. Mas o filme não saiu, Caio morreu em 96 e, anos depois, Guilherme resolveu retomar o projeto. Leu o romance e incorporou algumas coisas ao roteiro. Modificou o final: "Se estivesse vivo, Caio também o faria." E agora, tantos anos depois, chega às telas Onde Andará Dulce Veiga?, o filme.   Sensação de desamparo   A história, no início, é muito simples. Um jornalista, não por acaso chamado Caio (Eriberto Leão), vai fazer uma entrevista com uma cantora de rock, Márcia (Carolina Dieckman), e descobre que ela é filha da famosa Dulce Veiga, que desapareceu sem deixar traços. Acontece que o chefe de Caio no pasquim onde ele trabalha é louco por Dulce e coloca o repórter na pista da cantora. Temos aqui, então, aquele ambiente do agrado de Guilherme, um cenário noturno, aquele onde os gatos são pardos e as aparências sempre enganam, deixando entrever múltiplas realidades sob um mundo que se supõe estável. Enfim, esse real, no universo dos filmes de Guilherme, é móvel, sediço, frágil; depende muito do ponto de vista de quem observa. E, como o "olhar" proposto também não é fixo, o desenvolvimento da história causa ao espectador uma crescente sensação de instabilidade, quando não de desamparo.     Esse estilo, diria quase essa visão de mundo do diretor, se revela desde seus primeiros filmes, em especial seu maior sucesso, A Dama do Cine Shangai, passando por Perfume de Gardênia até seu mais recente, anterior a Dulce Veiga, A Hora Mágica, adaptado do conto de Julio Cortázar, Cambio de Luces. No fundo, o trabalho de Guilherme é um diálogo com o cinema e, em especial, com seus gêneros favoritos, entre eles o noir. Diálogo com suas deusas, femmes fatales tão bem encarnadas na beleza de Maitê Proença, e, sobretudo, a obscuridade das relações humanas, ambíguas em especial no que dizem respeito à sexualidade e às relações amorosas. Não surpreende, por exemplo, que o ponto de partida da investigação em Dulce Veiga seja uma cantora lésbica, pela qual o jornalista-investigador se descobre fascinado. O filme trabalha com inversões desse tipo e, se não escapa de uma certa impressão de artificialidade, é porque também esta acaba expressando parte da visão de mundo do artista. O próprio Guilherme diz: "Existe em meus filmes um limite muito nebuloso entre o que é real e o que é realidade ficcional."     São propostas estéticas. A de Guilherme não passa pelo naturalismo nem pelo realismo crítico. Quando, em certo período da Retomada, o cinema ficcional mais empenhado intensificou seu diálogo com o documentário, Guilherme tomou a direção oposta. Ou melhor, prosseguiu em seu caminho próprio. Sempre achou "uma balela" a afirmação de que o documentário retrata melhor a realidade que a ficção. E insistiu em certa linha de conduta cinematográfica: "Procuro ambientar meus filmes sempre num Brasil mental, uma espécie de universo paralelo."   Se esse "Brasil mental" recriado em Dulce Veiga faz sentido, cabe em última análise ao espectador decidir. Acostumado à linguagem naturalista (que, com exceções, é o padrão na TV), fica a dúvida se esse público será capaz de sentir-se à vontade no ambiente pós-moderno proposto pelo cinema de Guilherme de Almeida Prado. É um caminho particular, uma assinatura de cineasta, embora muitas vezes desperte a dúvida sobre a clareza de sua proposta, em especial no momento em que os filmes são lançados. No entanto, vistos em retrospectiva, A Flor do Desejo (1984), A Dama do Cine Shangai (1987), Perfume de Gardênia (1995) e A Hora Mágica (1998) parecem formar um desenho assimétrico, porém coerente. Resta ver se Onde Andará Dulce Veiga encontrará lugar nesse traçado.     Onde Andará Dulce Veiga? (2007, 135 min.) - Drama. Dir. Guilherme de Almeida Prado. 16 anos. Cotação: Bom

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