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Réplica digital: tecnologia cria multidões, dá vida a dublês virtuais e aflige atores reais; entenda

Inteligência artificial e novas técnicas de edição são usadas para ‘escanear’ atores e criar ‘réplicas digitais’ em filmes e séries. Sindicato de Hollywood pede regulação, enquanto tecnologia fica cada vez mais impressionante

Por Marc Tracy


THE NEW YORK TIMES - Para encher três temporadas de estádios ingleses de futebol com multidões animadas e exasperadas, a série de comédia da Apple TV+ “Ted Lasso” recorreu a dezenas de atores de fundo e uma poderosa tecnologia de efeitos visuais.

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Usando uma técnica conhecida como “alinhamento de multidão”, a empresa Barnstorm VFX ajudou a filmar grupos de figurantes lado a lado, antes de reorganizá-los e filmá-los novamente e, em seguida, recortar e colar os vários agrupamentos para preencher todos os assentos. Os criadores da série também usaram “inserções de multidão”, nas quais os atores foram filmados individualmente em telas verdes e depois organizados para aparecer como parte do público. Existem até dublês digitais: modelos tridimensionais cujo deslocamento foi guiado por um “ator de movimento”.

Inovações em tecnologia digital e inteligência artificial transformaram o mundo cada vez mais sofisticado dos efeitos visuais. Eles podem replicar e transformar artistas de carne e osso em avatares virtuais de forma cada vez mais convincente. Esses avanços colocaram o assunto no topo das queixas da greve dos atores de Hollywood.

Técnicas digitais foram usadas para encher os estádios de Ted Lasso, multiplicando os figurantes Foto: AppleTV+/

O SAG-AFTRA, sindicato que representa mais de 150 mil atores de televisão e cinema, teme que a demanda dos estúdios de Hollywood para que os artistas aceitem o uso de suas réplicas digitais pode levar ao uso de suas entonações de voz, semblantes e movimentos corporais digitalizados em diferentes contextos, sem pagamento extra.

Duncan Crabtree-Ireland, negociador-chefe do SAG-AFTRA, disse que seria impossível para os atores consentirem de forma consciente sem saberem como suas réplicas digitais seriam usadas em um universo cinematográfico ou, em alguns casos, projetos futuros desconhecidos.

“Isso é realmente abusivo”, disse ele, “e não é uma maneira correta de as empresas lidarem com a imagem, semelhança ou jeito de ser de alguém. É como ter a posse uma pessoa.”

Em um texto em seu site, o sindicato diz que suas contrapropostas incluem garantias de “consentimento informado e compensação justa quando uma ‘réplica digital’ é feita através de nossa atuação e alterada usando IA.”

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Guy Henry tem seus movimentos capturados digitalmente para o filme 'Rogue One: Uma História Star Wars' Foto: Industrial Light & Magic/Lucasfilm

Um porta-voz da Associação de Produtores de Cinema e Televisão, a organização que negocia em nome dos estúdios, contestou a caracterização do sindicato de sua proposta. A posição da associação “permitiria apenas que um estúdio usasse a réplica digital de um figurante no filme para o qual ele é empregado”, disse o porta-voz, Scott Rowe, em um comunicado por e-mail. “Qualquer outro uso requer o consentimento do figurante e negociação para o uso, sujeito a um pagamento mínimo.”

Dezessete mil membros do sindicato realizaram trabalhos de figurante no ano passado, e mais de 80 mil fizeram esse trabalho em algum momento de suas carreiras, segundo dados do SAG-AFTRA. Os figurantes recebem uma taxa diária de US$ 187 (R$ 912) a cada oito horas.

Dublês e 'réplicas digitais' estavam em estádio de 'Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge' Foto: Divulgação/W

Jennifer E. Rothman, professora da faculdade de direito da Universidade da Pensilvânia especializada em propriedade intelectual, disse que, se os limites de réplicas digitais não foram definidos na mesa de negociações, artistas menos conhecidos podem não ser capazes de negar as demandas dos estúdios.

“São os novatos e os figurantes que não terão nenhum poder de barganha”, disse ela.

Lawson Deming, supervisor de efeitos visuais e co-fundador da Barnstorm, concorda com essa opinião. Atores famosos poderão negociar em seus contratos cláusulas de propriedade de suas imagens, mas a grande maioria dos membros do SAG-AFTRA não terá essa sorte, ele afirma.

“Não é uma questão de tecnologia”, disse ele. “É uma questão de quem tem o poder no relacionamento.”

Isso ocorre em parte porque a tecnologia já está presente.

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Esses cenários podem soar como ficção científica, mas “atuações” de atores veteranos ou mesmo falecidos ajudaram em filmes como “Rogue One: Uma História Star Wars” de 2016. Peter Cushing, que morreu em 1994, repetiu seu papel como Grand Moff Tarkin, do filme original de 1977, com a ajuda da captura de movimento gravada em um ator diferente, com permissão de seus herdeiros.

O personagem Grand Moff Tarkin foi retratado por uma réplica digital do ator Peter Cushing em 'Star Wars' Foto: Divulgação/Lucasfilm

“Os humanos digitais já fazem parte do processo de efeitos visuais há algum tempo – cerca de 20 anos”, disse Paul Franklin, supervisor de efeitos visuais do estúdio DNEG.

Inicialmente eles foram criados para serem o que Franklin chama de “dublês digitais “, réplicas de atores para cenas que eram tão perigosas ou impossíveis que dublês da vida real não as fariam. Ele já ajudou uma réplica digital do ator Henry Cavill a voar como Superman em “O Homem de Aço” de 2013.

Fazer esse trabalho geralmente envolve uma prática conhecida como fotogrametria, na qual muitas fotografias de algo fisicamente real – como a cabeça de um ator – podem ser usadas para reconstruí-lo digitalmente em três dimensões.

A técnica mágica também é usada para construir cenas de multidão como as de “Ted Lasso”. Para “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, de 2012, Franklin usou técnicas digitais para preencher os quase 70 mil assentos no estádio de futebol profissional de Pittsburgh com apenas 11 mil figurantes.

Bob Wiatr, diretor de efeitos visuais, foi fundamental para preencher as cenas da multidão em “Daisy Jones & the Six”, série da Amazon que estreou este ano. Em uma cena em que a câmera, inclinada atrás da banda de rock, se volta para a multidão, atores de fundo reais ocupam as primeiras filas, enquanto avatares gerados por computador preenchem o resto.

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“Às vezes há pessoas que são reconhecíveis na frente”, disse Wiatr, referindo-se a outros projetos, “e eles decidem que querem fazer isso de outro ângulo depois de já terem filmado a cena, então eles recriam a cena e aí geralmente você tem pessoas geradas em 3D - muitos softwares podem fazer isso.”

Isso não significa, porém, que a tarefa seja simples ou barata. Deming, da Barnstorm, diz que as preocupações com a reutilização de escaneamentos digitais dos atores podem ser exageradas.

“É muito complexo escanear digitalmente alguém e torná-lo animável, realista e funcional”, disse ele, embora admita que “estamos dando saltos muito grandes”.

Para Franklin, que já ganhou dos Oscars de efeitos visuais, por “A Origem” e “Interestelar”, está claro que a tecnologia avançou além do escopo dos contratos típicos da indústria.

“Acho que é uma preocupação válida”, disse ele. “As pessoas pensam: ‘Bem, o que vai acontecer com esses dados? Como serão usados no futuro?’”

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