Na entrevista que deu ao Estado, pelo telefone – estava em Berlim, justamente para promover o lançamento de Blade Runner 2049 –, o diretor Denis Villeneuve confirmou o que havia dito na Comic-con de San Diego. Perguntaram-lhe, na ocasião, por que aceitar um projeto como o ‘rebbot’ – a sequência – da cultuada fantasia científica de Hollywood, de 1981. “Gosto muito do original, e só aceitei para evitar que outro pegasse o material para ‘fuck’d-up (f...) com ele.” Villeneuve conta que não planejou dizer aquilo. “Saiu espontaneamente. Veio do coração.”
O tão aguardado novo Blade Runner estreia nesta semana – quinta-feira, 5 – nos cinemas brasileiros. Nos EUA, a estreia será na sexta, 6. Quando conversou com Villeneuve, o repórter havia visto apenas um ‘footage’ de 25 minutos do filme, com cenas – cronológicas – que davam uma ideia da trama e dos personagens. O filme foi visto – inteiro. São 2h40 de duração. Na despedida, o diretor havia dito – “Espero não decepcioná-lo.” Não decepcionou, como fez o próprio Ridley Scott com a nova versão de Alien, Covenant. Scott tem crédito como produtor de Blade Runner 2017. Quando falava de evitar que estragassem o filme, Villeneuve pensava nele? “Estou aqui quieto, você é que está falando.” Mas o riso dele, do outro lado da linha, entregava. Villeneuve também não gostou de Alien – Covenant. Está feliz com seu Blade Runner.
No Rio, também em conversa com o repórter, no dia seguinte à sua apresentação no Rock in Rio, Jared Leto, que faz o misterioso Niander Wallace, disse que foi como realizar um sonho. “Sempre gostei de Blade Runner. E agora faço parte dessa história.” Há grande expectativa pelo resultado financeiro do filme. Há 30 e tantos anos – 36 –, o Blade Runner de Scott fracassou na bilheteria. Mas virou cult – o reconhecimento de público só começou a vir quando estreou a versão do diretor, com cenas adicionais. Desde a época, a dúvida persiste – Deckard, o blade runner, caçador de androides, é, ele próprio, um replicante? A questão agora é outra – K/Ryan Gosling, o novo blade runner, é humano? Novas questões realimentam – reinventam? – o mistério. Blade Runner! Villeneuve conseguiu.
Em 1981, Ridley Scott já tinha no currículo Os Duelistas e Alien, o Oitavo Passageiro. Sua livre adaptação de Philip K. Dick – Do Androids Dream of Electric Sheep? –, que resultou em Blade Runner, o Caçador de Androides, custou US$ 28 milhões, numa época em que os orçamentos milionários começavam a virar norma em Hollywood. A expectativa de um mega êxito frustrou-se, mas, em compensação, algo se passou. O filme deu origem a um culto. A visão decadente do futuro de Los Angeles, segundo Scott, seduziu legiões. Em 1992, a versão do diretor finalmente obteve o pleno reconhecimento.
Existe toda uma bibliografia sobre os bastidores de Blade Runner. Harrison Ford não entendia o conceito, vivia às turras com o diretor e, para completar, Ford – Han Solo!, um notório ladies man – não se bicava com Sean Young, que fazia a replicante. Odiavam-se. Contra tudo isso, ou pode ser que por tudo isso, criou-se o mito do filme. Exatamente 36 anos depois, surge Blade Runner 2049. O original passava-se em Los Angeles, 2019. Agora, 30 anos depois, um novo blade runner está caçando androides na cidade. Caçar não é bem o termo. Ele os ‘aposenta’. Nesse futuro ainda mais decadente, sucederam-se as revoltas de replicantes. De cara, K/Ryan Gosling é mostrado em ação. Tensão, violência. Aposentado o replicante, a missão complica-se com a descoberta de uma caixa. Nela está a pista para o mistério do novo filme. Há uma criança especial, um milagre. Foi parida por uma androide, filha de um humano. Villeneuve – “Quando me propuseram o filme, minha primeira reação foi dizer não. Gosto tanto do original... Mas justamente por gostar tanto, não poderia deixar que outro f... com o que virou tão importante no imaginário coletivo. E disse sim.” A história atraiu-o, e muito. O tema do criador e da criatura, que ele chama de ‘tema de Frankenstein’. “Mas não teria aceitado, se não me assegurassem toda liberdade. Fiz o filme que queria. Sorry, mas se não estivesse satisfeito não poderia culpar ninguém.”
A Chegada, no ano passado, foi a primeira ficção científica de Denis Villeneuve. “Sempre gostei muito do gênero. Pertenço a uma geração que via fantasias futuristas para tentar entender o mundo. 2001 (de Stanley Kubrick) é um dos filmes da minha vida. Mas eu não encontrava o meu viés, a história que queria contar. A Chegada marcou esse comprometimento.” E Blade Runner 2049? “Não sei se você estará de acordo com o que vou dizer, mas esse filme engloba todos os que fiz antes – Incêndios, O Homem Duplicado, Sicário, A Chegada. É um filme sobre lembranças, duplos, poder, linguagem e comunicação.” O tema do criador e da criatura? “É visceral. Possui dimensão mítica, bíblica. O anterior já tinha. O replicante cravava o prego na própria mão. O sacrifício permeia os dois filmes. O que vem para liderar, para libertar.”
Villeneuve admite que tomou muitas liberdades com o conceito visual de Ridley Scott. Acha que foi mais fiel ao score. “Nunca vi alguém que, gostando de Blade Runner, não reverenciasse a trilha de Vangelis, incluindo a faixa One More Kiss, Dear, pela New American Orchestra. Com Johann Johansson e Han Zimmer, procuramos uma sonoridade grandiosa, majestosa, mas nada disso faria sentido sem o essencial. A melancolia. Para mim é o tema de Blade Runner 2049. Não falo da melancolia somente como tema musical, mas como conceito.” Androides sonham com carneiros elétricos? As memórias são reais ou implantadas? Esse tema da memória está sempre presente em Philip K. Dick – O Vingador do Futuro. Agora – o unicórnio de papel sugeria que Deckard/Ford era androide? O cavalo de madeira com data, pelo contrário, humaniza K? O final em aberto fazia do filme anterior umas meditação sobre o poder. O novo final – olha o spoiler – atualiza essa reflexão para o estado do mundo em 2017. E o vilão, Wallace? “Não o vejo como vilão”, diz Jared Leto. “Há nele uma convulsão. O criador que sabe que fracassou. Tentei acalmar sua tensão interior. Ficou ainda mais terrível.”