'Sorry We Missed You', de Ken Loach, faz crítica aos gigantes Uber e Amazon

Após ganhar a Palma de Ouro, em Cannes, diretor volta com filme que fala sobre a exploração do trabalho humano na onda da terceirização

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

Ken Loach é um ótimo cineasta. Em 2016, ele recebeu a Palma de Ouro em Cannes. E mesmo antes disso, cada um de seus filmes é um evento à parte e o que ele apresentou em ParisSorry We Missed You, não é exceção à regra.

Loach é um homem idoso, oitenta e três anos. Ele é infatigável, como a raiva e a indignação, mais precisamente, o que o inflama é o espetáculo da injustiça social. É preciso reconhecer que o capitalismo e o liberalismo não estão entre seus amigos. Não devemos confiar em sua voz suave. Essa doçura é terrível. Demole, quebra e destrói com prazer, mas não bate ao acaso. Atinge todos aqueles que, nas sociedades modernas, escravizam e humilham milhões de homens pelo prazer infinito de algumas sombras que nunca são vistas e que lhes confiaram o trabalho sujo, não a contramestres vingativos, mas a algoritmos que permitem acelerar o ritmo do trabalho ao ponto do intolerável, às vezes ao perigo (Uber primeiro, mas também Amazon ou Deliveroo),

O diretor Ken Loach no Festival de Cannes, em 2019, antes da cerimônia de premiação. Ele concorreu com 'Sorry We Missed You' Foto: Stephane Mahe/ Reuters

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Como sempre, se dirá? Não, porque um algoritmo não é um personagem conveniente. Além disso, como ele nem existe, você não pode culpá-lo, menos ainda chorar para comovê-lo, ou sacudi-lo para fazer rios de moedas de ouro pingarem de seus bolsos, ou nocauteá-lo com seus punhos para suavizar sua hipocrisia. É assim que você está empregado nessas sociedades, nessas plataformas, nesses silêncios e ausências, em todas essas abstrações que observam sem falhas a tribo de formigas que pedalam de manhã à noite, sim até a noite, para nos entregar nossas guloseimas ou caprichos. Trazem pratos fumegantes, para nós que não moramos na mesma geografia que o povo das formigas e não trocamos uma palavra porque o entregador partiu com a velocidade do raio, mal depositou uma caixa na frente da sua porta ou tocando e ele já desce as escadas ou pula para o elevador, temendo desagradar o algoritmo que não deixou um milímetro durante tal Odisseia de degradação.

Mas finalmente, diz-se, essas críticas não dizem respeito à Uber, já que a genialidade desse tomador de decisão é justamente de se fazer seu criado, esse rato dedicado a girar sem fim sua roda, esse cara que de vez em quando para, a fim de pegar uma garrafa de plástico vazia, fornecida pelo resto pela empresa, para que você possa mijar na rua, atrás de sua porta, sem quebrar o ritmo e logo saltar de volta à sua sela. Sim, essa formiga se tornará, se funcionar bem, como uma formiga louca, empreendedora, dona, dona de seu destino e de sua felicidade, se tornará Rockefeller ou Bernard Arnault. Maravilha.

Só que não. Ele nunca sairá de sua condição, sua agitação de insetos ou sua garrafa de urina. Ele está acorrentado como todos os seus semelhantes. Mais cruelmente que o Chaplin dos tempos modernos. E ele tem uma vida familiar, afinal? Você está rindo? Se ele tivesse que com o que sonhar, além disso? Ou crianças, livres também, para a ferocidade da rua, sob o olhar impassível do algoritmo. Assim é o filme do britânico Ken Loach, filho não de pobres, mas de pequenos burgueses. Vemos que a idade não tem influência sobre sua atividade. Ele está intacto. Não perdeu nada do virtuosismo que lhe permite lidar com temas austeros, sociológicos ou filosóficos, com rigor, sem negligenciar as piadas, às vezes o lirismo, enfim, tudo que torna o romance ou o cinema uma arte.

Aqui e ali, mais no final, algumas passagens muito didáticas. Ótimo filme. Como ele está em Paris para a estreia do filme, perguntaram a ele sobre o Brexit e Boris Johnson. – “Tudo isso é uma diversão. Uma discussão entre duas facções da direita. De um lado, o mundo dos negócios que deseja permanecer na Europa para proteger seus mercados. Do outro lado, uma extrema direita, uma direita pirata, que pensa que será capaz de explorar um pouco mais facilmente as pessoas que permanecem fora do Mercado Comum: baixos salários, desregulamentação, lucros rápidos, só temos o direito a isso, um debate de direita com indícios de falso nacionalismo, xenofobia e chauvinismo. Não. O Brexit não é essencial. O assunto é a pobreza que está aumentando, inclusive entre os que trabalham, o sistema de saúde em colapso, esportes caóticos em grupo, estresse no trabalho, como eu os mostro em meu filme. Temos que lidar com esses problemas estando na União Europeia. No dia em que a deixarmos, os problemas continuarão, sempre lá”.

(Tradução de Claudia Bozzo)

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