O título do filme é bem direto, mas quem espera realismo deve revisar suas expectativas desde as cenas iniciais, quando em seu próprio velório um defunto desperta da morte para repreender a viúva e dizer o quanto a odiava. Estamos na Rússia do século 19, em A Esposa de Tchaikovsky, do diretor russo Kirill Serebrennikov. O filme estreia hoje no Brasil, depois de haver passado pelo Festival de Cannes de 2022. Abre com esta cena de realismo mágico, digna de um Gabriel García Márquez.
A história refere-se ao complexo e tumultuado casamento entre o compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovski (Odin Lund Biron) e a jovem Antonina Ivanovna Milyukova (Alyona Mikhailova) na São Petersburgo czarista. Antonina era fervorosa admiradora do artista e se declara apaixonada por ele. Acontece que o desinteresse do compositor pelo sexo feminino era notório para a sociedade russa da época.
ESPIRITUAL. Para calar o falatório em torno de sua homossexualidade, Tchaikovski, após muita insistência, resolve atender ao pedido da mulher. Não lhe promete uma paixão febril, mas “um amor calmo, sereno, de irmã e irmão”. Isto é, sem sexo. Espiritual.
Apesar de ter concordado com os termos do matrimônio, Antonina cada vez mais passa a exigir de Tchaikovski o cumprimento de suas obrigações. A pressão torna-se insuportável. O que era para ser o “amor fraterno”, previsto de início, transforma-se em ódio e repugnância. Após seis semanas de tormento, Tchaikovski abandona a mulher e busca ares amenos para dar seguimento à carreira artística que sente prejudicada pela união.
Antonina obstina-se. Nega-se a conceder o divórcio. Continua apaixonada por ele, de maneira terminal. O filme segue de perto a deterioração mental que nela se processa de maneira implacável, progressiva e cruel.
Com ênfase diferente, a mesma história havia sido contada pelo britânico Ken Russell em Delírio de Amor (The Music Lovers, 1971). O ponto de vista de Russell era o do homem; o de Serebrennikov, o da mulher. Russell é barroco e delirante; Serebrennikov, mais contido e onírico. O filme atual é melhor, mais sutil e rigoroso que o de 50 anos atrás.
Tchaikovski (1840-1893) foi um personagem dramático, mas conheceu a glória em vida. É, até hoje, considerado o mais famoso, senão o maior dos compositores eruditos da Rússia, embora críticos façam ressalvas às supostas facilidades da sua obra. No entanto, na leitura do caso feita por Serebrennikov a obra do compositor fica em segundo plano. Aliás, quase nem entra sequer como pano de fundo.
CARENTE. O centro da atenção é a mulher – e seu sofrimento. Obsessiva, carente, abandonada e vítima de um colapso mental que a levaria a um sanatório para pessoas com transtornos psíquicos, Antonina, apesar de tudo, vive sua sexualidade. Busca relações com outros homens e torna-se amante do seu advogado. Tem filhos. Nunca renuncia ao seu amor. Dorme com o advogado, mas o despreza. A qualquer um que a conheça, apresenta-se como “esposa de Tchai-kovski”. Sobrevive muitos anos ao seu amado. O compositor morre em 1893, ela vive até o alvorecer da Revolução Russa, em 1917.
Essa ênfase na figura feminina obedece a uma tendência de época. Se Antonina figura nos livros de história apenas como ninfomaníaca, ou a infeliz esposa de um grande homem, com Serebrennikov recobra sua espessura trágica e complexidade psicológica.
O filme não deixa de sublinhar a crueldade de um tempo em que a homossexualidade precisava ser escondida como uma vergonha pública e camuflada em infelizes casamentos de conveniência. Antonina foi a principal vítima desse preconceito, arraigado numa sociedade do século 19, intolerável nos dias de hoje. Pelo menos entre pessoas civilizadas.