Domenico Starnone narra os dissabores de um narcisista em ‘Dentes’

Romance do italiano traz elementos do insólito e a aflição de um homem na cadeira do dentista

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Por Mateus Baldi

O narrador deste romance concentrou nos dentes todos os seus impulsos autodestrutivos. Ainda criança, quando sabia “pouco ou nada sobre o destino dos corpos”, foi visitar Pompeia com os pais. Caminhando entre as ruínas, indiferente à destruição da lava, observou as colunas recortadas pelo tempo. Sentiu-as na boca. As colunas eram dentes e a cidade, “uma boca dentada” que mordia o céu. O que se seguiu foi óbvio, para ele: deitou-se no chão e abriu a boca, sentindo o céu nos dentes. Depois, chegando em casa, atirou-se ao chão e deu com a boca nos ladrilhos.

Esta cena insólita é o ponto de partida de Dentes, originalmente publicado na Itália em 1994. Traduzido por Maurício Santana Dias (responsável por verter outros três títulos do autor, lançados no Brasil pela Todavia), estas quase 200 páginas trazem características que o italiano Domenico Starnone desenvolveria melhor em obras futuras, como Laços e Mentiras. Para além dos títulos sucintos, já estão ali as análises meticulosas do jogo de mentiras que sustenta a classe média, encoberta por traições, amores complicados e histrionismos.

Para além dos títulos sucintos, já estão ali as análises meticulosas do jogo de mentiras que sustenta a classe média

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Quando Dentes começa, o narrador acaba de perder os incisivos – não por acaso, os que lhe serviam para pronunciar o nome. Mara, por quem ele largou a mulher e os três filhos, lhe atira um cinzeiro após uma discussão, e recordar o ocorrido em Pompeia é só uma forma de Starnone trazer à baila quão atormentado seu protagonista sempre foi. Com uma entrevista de emprego em poucos dias, esse narcisista em queda inicia um périplo por uma gama de dentistas romanos, cada um mais pitoresco que o outro.

O uso de certo dispositivo policialesco na busca se revela uma estratégia eficaz. Remexer o lodo do passado aumenta o que podemos classificar de agonia de Oico, como ele será identificado, já que é a única forma de pronunciar o próprio nome.

O escritor italiano Domenico Starnone no Salão Internacional do Livro de Turim, ele é autor de 'Laços' e 'Dentes'  Foto: Filippo Alfero

Trabalhando com uma lógica do terror, Starnone avança a narrativa na direção de um gore lírico. Gengivas, sangue, brigas: por um lado, tudo parece derivar para os lados do choque, da aflição, um pânico de dentista transformado em frenesi literário; mas, por outro, é também a derrocada do homem medíocre, da classe média italiana dos anos 1990, com todos se traindo a todo momento, como se uma estabilidade fosse inevitável para aqueles que precisam sempre perseguir o dinheiro. O que sobra, e sobra muito, vai para os filhos — o horror.

Nesse sentido, a cena no consultório de Cagnano é excelente, quiçá a melhor do livro: sob o olhar atento da filha Michela, com seus “incisivos superiores se projetando para baixo, como um desmoronamento”, o protagonista-explorador é explorado por este homem grosseiro que lhe diz: “lembre-se sempre de que o verdadeiro paciente não é o senhor, mas o dentista”. Um jogo de semelhantes cujo topo da cadeia alimentar é trocado a cada segundo, o delírio da alternância.

O escritor norte-americano Philip Roth, autor de 'Pastoral Americana' Foto: ERIC THAYER/REUTERS

A certa altura, Oico diz que “a morte é uma força mal-educada, que lança sinais vulgares e derrisórios”. Numa chave mais geral — as decisões narrativas tomadas por Starnone —, é interessante notar como esse tipo de história sobre o crepúsculo do macho muitas vezes acaba indo para o cemitério, a morte do outro como a meta-morte de si — pense no Homem Comum e no Mickey Sabbath de Philip Roth, talvez quem melhor soube radiografar essa queda.

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Apontado como a pessoa por trás de Elena Ferrante — ou ao lado dela, já que sua esposa, Anita Raja, também está no páreo —, Domenico Starnone é um dos grandes ficcionistas de sua geração. Não surpreende que seja capaz de conjugar tantas facetas do mesmo personagem: pai fracassado que não vê os filhos há quatro meses, marido irresponsável, homem no limite da falência social, indivíduo sem nome. Para o leitor, após superar alguns floreios desnecessários da prosa, o resultado é um exemplo de boa literatura, um mosaico eficiente na forma e no conteúdo — como um espelho partido, mil fragmentos de vidro chovendo sobre a pia.

DENTES

DOMENICO STARNONE

EDITORA TODAVIA

176 PÁGINAS

R$ 64,90 ou R$ 49,90 (E-book)

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