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'Escritos Corsários' reúne textos mais polêmicos de Pier Paolo Pasolini

Cineasta e poeta italiano provocou curto-circuito na direita e na esquerda e foi crítico ferrenho do patrulhamento e do moralismo

Por Luiz Nazario
Atualização:

Na imensidão da obra escrita de Pier Paolo Pasolini, a ensaística e a jornalística ocupam um lugar privilegiado, mas complexo, devido à forma como seus escritos se disseminaram em jornais e revistas dos mais diversos formatos por toda a Itália, sem que ele tenha podido reuni-los todos em livros antes de morrer. Pasolini conseguiu organizar apenas três coletâneas de seus ensaios e artigos: Paixão e Ideologia (1960), O Empirismo Herético (1972) e Escritos Corsários (1975) – os dois primeiros ainda inéditos no Brasil. Por terem sido editados pelo autor, os três livros adquiriram um caráter mais efetivo e afetivo em relação às demais coletâneas, tão excelentes quanto aquelas, mas que, organizadas por estudiosos de sua obra, vieram à luz postumamente: Cartas Luteranas (1976), As Belas Bandeiras (1977), Descrições de Descrições (1979), O Caos (1979), O Pórtico da Morte (1988), Os Diálogos (1992).

Jovens em frente a uma foto de Pasolini em seu bairro natal em Roma Foto: NADIA SHIRA COHEN/THE NEW YORK TIMES

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Na França surgiram até coletâneas “temáticas”, recortadas das diversas coletâneas, como Escritos sobre o Cinema (1987), Escritos sobre a Pintura (1997), Escritos sobre o Cinema: Pequenos Diálogos sobre os Filmes (2000), Os Terrenos: Escritos sobre o Esporte (2012)... 

Escritos Corsários saiu integralmente em Portugal sob o título de Escritos Póstumos pela Moraes Editores, em 1979. No Brasil, apenas uma seleção dos artigos do livro foi publicada tardiamente pela Editora Brasiliense em 1990, juntada com outra seleção de artigos de duas outras coletâneas do autor, Cartas Luteranas e Descrições de Descrições – ainda inéditas entre nós – como uma “antologia de ensaios corsários”, organizada por Michel Lahud e intitulada Os jovens Infelizes. Somente agora, 45 anos depois de seu lançamento na Itália, Escritos Corsários aporta ao Brasil de forma completa pela Editora 34. 

Apontemos um pequeno senão: a redação ambígua da nota três da página 18 da edição atual pode induzir a um erro sobre a história da recepção das obras de Pasolini no Brasil: “Em 1990, a Editora Brasiliense publicou Os Jovens Infelizes. Tratava-se de uma primeira apresentação da obra ensaística do escritor no país.” A informação é repetida à página 28: “Alguns dos artigos presentes neste livro já haviam aparecido em Os Jovens Infelizes, primeira coleção de ensaios de Pasolini publicada no Brasil (Brasiliense, 1990), organizada por Michel Lahud (1949-1992).”.

Na verdade, a primeira coleção de ensaios de Pasolini publicada entre nós foi Caos: Crônicas Políticas, traduzida por Carlos Nelson Coutinho para a Brasiliense em 1982, seguida por Diálogo com Pasolini: Escritos (1957-1984), traduzida por Nordana Benetazzo para a Nova Stella, em 1986 – como consta, aliás, na seção “Tradução de livros de Pasolini no Brasil” da bibliografia da edição, à página 289. Na seção “Sugestão de Leitura” omitiu-se também a primeira biografia de Pasolini no Brasil, Pasolini: Orfeu na Sociedade Industrial (Brasiliense, 1982) e a mais completa até hoje em nossa língua, Todos os Corpos de Pasolini (Perspectiva, 2007).

A escolha do prefácio da reedição italiana assinado por Alfonso Berardinelli não foi das mais felizes: o crítico reduz os Escritos Corsários a “protagonismo e vitimização”. Para ele, Pasolini nada traz de novo: a homologação cultural teria sido diagnosticada pela sociologia dos anos de 1960 e pela teoria crítica de Adorno, Horkheimer e Marcuse. Além disso, a visão apocalíptica do corsário seria “um caso pessoal”. Seu saber teria “uma base empírica limitada à sua própria experiência pessoal e ocasional”, como se, em seus requisitórios, ele só “manifestasse, representasse e dramatizasse teórica e politicamente suas angústias”. Em sua “análise tendenciosa”, Pasolini pintaria um “quadro deformado da realidade” e, nessa “deformação tendenciosa”, só “descobria coisas sabidas”, querendo “talvez atualizar a imagem um pouco desgastada do escritor como consciência pública, vítima perseguida, alma ferida.”. 

Berardinelli não acusa os citados sociólogos e filósofos marxistas dos anos de 1960 que Pasolini teria atualizado na Itália dos anos de 1970 de subjetivismo histérico. Como sempre, a acusação de deformar a realidade para tentar se passar por uma vítima é reservada às minorias sexuais. Felizmente esse prefácio eivado de preconceitos não compromete a oportuna edição, baseada na reedição de Scritti Corsari no volume Saggi sulla Politica e sulla Società de Tutte le Opere da Coleção I Meridiani da Editora Mondadori, organizada entre 1998 e 2003 por Walter Siti e Silvia De Laude. 

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Em Escritos Corsários Pasolini reuniu os artigos mais polêmicos que escreveu, entre 1973 e 1975, nos jornais e revistas Tempo Illustrato, Il Mondo, Nuova Generazione, Paese Sera e, sobretudo, no tradicional cotidiano Corriere della Sera. De Gabriele D'Annunzio a Dino Buzzati, de Luigi Pirandello a Italo Calvino, os maiores escritores italianos do Novecento colaboraram neste jornal milanês fundado em 1876. Pasolini não concordava com a linha editorial do jornal, mas ao receber a garantia de poder aí escrever o que quisesse, com total liberdade, aceitou ser seu colunista para que suas ideias atingissem um público mais amplo. Sua coluna seria uma nau pirata legalizada na imprensa burguesa. Por seu lado, os editores liberais do Corriere, em fase de renovação sob a direção de Piero Ottone, apreciaram tanto o brilho visionário dos artigos de Pasolini que não hesitaram em estampá-los na primeira página.

Passando a atingir um público imenso através da grande imprensa, o pensamento radical de Pasolini acabou por fazer dele uma vítima: Escritos Corsários foi o último livro que o poeta-cineasta organizou e publicou, ainda que não o tenha visto publicado: pouco depois de revisar as provas junto ao editor Aldo Garzanti, ele foi assassinado em 2 de novembro de 1975. O crime homofóbico estava diretamente ligado à fúria causada pelas ideias “corsárias” expressas nos artigos do Corriere della Sera com força estrondosa. Pasolini escreveu na introdução de Escritos Corsários que a unidade do livro seria feita pelo leitor: mas sua cuidadosa seleção deixou claro o sentido do título metafórico que escolheu para a coletânea: essa “fase corsária” de Pasolini era a da vivência desesperada de sua homossexualidade, que ele via sendo degradada pelo novo fascismo do consumo, e que ele sublimava num criticismo apocalíptico para não deixar ninguém dormir em paz.

Contrabandeando as teorias dos linguistas da Língua para a Realidade, Pasolini a lia como um texto obscuro, mas decifrável. O poeta começou a desenvolver seu método crítico nos anos de 1960, quando se tornou cineasta, passando a interrogar-se sobre a natureza da linguagem do cinema e a particularidade de seus signos, que chamou de “im-signos” para distingui-los dos signos linguísticos. Logo percebeu que o cinema era “a língua escrita da ação”, sendo a realidade um cinema ao natural, constituindo uma linguagem reprodutível pela câmara, momento a momento, num plano-sequência infinito, composto de monemas linguísticos audiovisuais, que designou por “cinemas”. E subitamente percebeu que o conjunto desses “cinemas” poderia ser a língua de Deus. 

Ao contrário de outros marxistas, Pasolini não partia dos modelos ideológicos consagrados, mas dos objetos e comportamentos que proliferavam no cotidiano, observando seus efeitos menores ou minimizados. Detectando na superfície das coisas um epifenômeno do consumo, Pasolini chegava aos poucos, alargando cada vez mais o campo de visão, à gigantesca estrutura de homologação. Os sinais e sintomas da Realidade que apaixonava e aterrorizava Pasolini levou-o a conclusões assombrosas, completamente destoantes das leituras conformistas ou otimistas feitas pelos jornalistas e acadêmicos a partir dos mesmos eventos, produzindo um curto-circuito na direita e na esquerda. 

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Racionalista que reivindicava a dimensão do Sagrado, antifascista atacado cotidianamente pelas mídias liberais e conservadoras, homossexual assumido expulso das fileiras comunistas, Pasolini lia a realidade diretamente, sem intermediações, com seu próprio corpo, afetivamente, sensualmente, sexualmente, percebendo dela muito mais do que os seus críticos apáticos, conformistas e burgueses eram capazes de vislumbrar. A importância de Escritos Corsários em sua obra escrita equivale à de Salò em sua obra cinematográfica: como no filme que denunciava, de modo insuportável, o novo fascismo por meio do velho fascismo, o livro reunia as leituras finais que Pasolini fez da Itália consumista antes de ser vitimado pela violência de massa que aí denunciava: sua ultimate Semiologia da Realidade.

“Detalhes” menosprezados do cotidiano como a marca de um novo jeans chamado Jesus; o até então ignorado desaparecimento dos vagalumes; ou a moda dos cabelos compridos detonavam em Pasolini reflexões políticas que o conduziam à constatação do vazio existencial da juventude, ao horror diante do preço insuportável que se pagava pelo progresso, à revelação da violência de massa que a nova civilização do consumo produzia e, finalmente, à visão apocalíptica de um novo fascismo que penetrava em todos os lares através da TV, provocando uma verdadeira mutação antropológica do povo italiano. 

Embora com atraso, a nau corsária de Pasolini aporta em boa hora num país alucinado pela nostalgia da ditadura e pela sacralização do mercado, num conluio expresso pelo mote: “liberal na economia e conservador nos costumes” – a síntese medonha do pior de todos os mundos possíveis. A catástrofe do humano foi antevista por Pasolini nestes Escritos Corsários, assim como em seu último e inacabado romance Petroleo (publicado em 1992 na Itália, em 1996 em Portugal, ainda inédito no Brasil) e no imaginário maldito de Salò. Abandonar o Titanic no qual o mundo navega e embarcar na pequena nau corsária de Pasolini é recuperar um pouco de nossa própria humanidade.

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*LUIZ NAZARIO É PROFESSOR DE TEORIA E HISTÓRIA DO CINEMA NA UFMG E AUTOR DE ‘O CINEMA ERRANTE’ (PERSPECTIVA)

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