Luiza Nobre para o Estadão
Foi atendendo a um chamado do poeta Carlos Drummond de Andrade, que, 70 anos depois, a escritora cearense Socorro Acioli decidiu transformar a história de uma igreja soterrada em um livro. Em entrevista exclusiva, a autora, que se prepara para o lançamento do seu novo livro Oração Para Desaparecer, pela Companhia das Letras, conversa sobre o processo de criação da nova obra e as expectativas para o lançamento.
“100 anos depois, a literatura brasileira vive um movimento semelhante a algumas ideias do modernismo, quando escritores, sobretudo os nordestinos, que não tinham espaço naquele momento, passaram a narrar diferentes formas de olhar o Brasil; dessa vez trazendo quilombolas, indígenas e outros saberes”, pontua Socorro, que teve nos ritos do Povo Tremembé, conhecido pelo aldeamento de Almofala, a inspiração para o título e enredo do romance.
Seguindo a linha do realismo fantástico, como a do primeiro romance ‘A Cabeça do Santo’, o novo livro conta a história de uma mulher que, tendo perdido a memória, tem na língua portuguesa e no sotaque brasileiro o único norte para recuperar a própria identidade e o passado em um país estrangeiro.
Antes mesmo de ser pré-lançado, o livro já acumulou mais de 12 mil leitores ao ter sido publicado em uma edição do clube de assinaturas TAG Experiências Literárias em setembro. A escritora também compõe a programação de escritores convidados da 21° Festa Literária de Paraty (Flip), no mês de novembro.
Confira trechos da entrevista ao ‘Estadão’
O que te inspirou a escrever Oração Para Desaparecer?
Anos atrás, uma amiga estava em uma exposição de fotografias históricas do Ceará, e viu a foto da igreja Nossa Senhora da Conceição, a última foto antes da igreja ser interditada, e aparece o padre Antônio Tomás e umas pessoas na frente com vestido de época. Ela disse ‘olha eu vi uma foto aqui de uma igreja que ficou submersa 45 anos, é a tua cara’, e eu guardei a informação. Anos depois, eu iniciei a pesquisa, mas não estava engatando, achei que não ia fluir, mas ao mesmo tempo não saía da minha cabeça. Quando eu estava para desistir, resolvi pesquisar de novo e achei um artigo do Iphan de análise de restauro, que citava a crônica “Areia e vento”, de Carlos Drummond de Andrade. Na crônica, ele conta a história inteira de Almofala e cita uma prostituta que teria jogado um tamanco na cabeça do padre. Foi ali que encontrei a história.
Como foi estabelecer a relação Brasil-Portugal tanto na pesquisa quanto no vocabulário dentro da história?
A primeira coisa que eu fiz foi colocar ‘Almofalas’ no Google, e vi que tinham umas sete Almofalas em Portugal. Descobri que a Almofala significava acampamentos temporários para os Mouros. Muitas cidades do Ceará sofreram uma migração direto de Portugal em vários momentos da história do Brasil. A própria igreja foi construída com dinheiro da coroa portuguesa. Eu queria muito entrevistar uma pessoa que tivesse visto a igreja enterrada. Conheci o seu Júlio, pescador, que tirava areia da igreja com lata na infância. Ele contou que sentia medo porque ouvia um canto de missa próximo à igreja, ou quando botaram uma santa na duna, ela sumia e aparecia em Portugal, depois reaparecia na duna. Percebi uma possível ligação metafísica entre os dois lugares na ficção, para a personagem se movimentar entre as duas Almofalas, mas não sabia como. Até que o antropólogo Ronaldo Queiroz, meu parceiro de pesquisa, disse ‘é simples, usa a oração para desaparecer o Tremembés’, e assim foi.
Ainda em relação à língua portuguesa, por qual motivo usaste um personagem de outro livro, o Félix Ventura, do escritor angolano José Eduardo Agualusa, em Oração Para Desaparecer?
O Eduardo Agualusa é muito importante na minha vida como escritor e como amigo. O Félix Ventura surgiu por uma necessidade narrativa e também porque eu precisava de um personagem que contasse o que nenhum narrador ia dar conta de falar. Eu tinha relido O Vendedor de Passados, que também foi um livro muito importante na escrita do Cabeça do Santo, e o Félix foi absolutamente perfeito, foi um excelente interlocutor para ouvir aquela loucura vivida pela personagem, porque ele era acostumado a lidar com isso.
Eu não me preocupo com esse cenário porque eu não conseguiria fazer outro livro, nem outra coisa e nem de outro jeito.
O Oração Para Desaparecer se distancia do que tem sido tendência no mercado editorial, de uma sequência de livros biográficos. Você teve receio da recepção dos leitores?
Eu faço o que eu consigo fazer. Quando lancei o Cabeça do Santos, em 2014, eu estava muito mais na contramão do que hoje, porque era um momento em que não tinha quase nenhum romance escrito por uma mulher do Nordeste e publicado em uma editora nacional. Na época, foi muito difícil porque ainda tinha o peso de ter feito o curso com Gabriel Garcia Marquez. O Oração Para Desaparecer chega em outro contexto, depois de livros como Torto Arado. O cenário está um pouco diferente, tem ficção na maioria dos livros contemporâneos e eu não me preocupo com esse cenário porque eu não conseguiria fazer outro livro, nem outra coisa e nem de outro jeito.
Assim como o Cabeça do Santo, que vai virar filme, o seu novo livro é muito visual, cheio de microcenas muito ricas em detalhes. Qual a sua relação com a imagem na hora de escrever?
Eu tenho formação em roteiro em alguns cursos livres, não consigo me desvencilhar disso, pelo menos até agora, então, o livro não é muito construído assim, e isso torna a leitura magnética. Sobre o filme, a diretora será a Joana Mariani, que já está no tratamento do roteiro junto com a Natália Maia, as duas aqui de Fortaleza, mas ainda tem muito chão até o lançamento.
Uma das coisas que a personagem usa é o livro de memórias. Você usou algum livro de memória ou diário que te influenciou na construção desse livro?
Usei quatro cadernos, e adoro olhar para eles porque às vezes eu estava dentro da igreja e escrevia ‘tô dentro da igrejinha’, meses depois ‘tô em uma Almofala de Portugal’. Essa relação com o caderno é muito importante quando eu vou começar algo, eu acho que escrever à mão alimenta as coisas.
Os teus livros trazem uma presença forte da religiosidade brasileira. Isso é planejado ou vem espontaneamente conforme as histórias vão sendo escritas?
Eu fui criada em família católica, batizada, crismada, fiz primeira comunhão e todos os ritos. Com 13 anos, eu fui pela primeira vez sozinha em um lugar não católico, um terreiro de umbanda na Praia do Futuro, em Fortaleza, que fazia sessões que não sabia o que era direito, da Dona Teixeira. Depois, quando eu fui para Casa de Cura e fui estudar os rituais da espiritualidade do povo Tremembé, vi que no altar também tinha Nossa Senhora Aparecida, Cosme e Damião, Padre Cícero, Preto Velho e outras figuras, como as que eu vi quando era criança. Aí o antropólogo Ronaldo Queiroz me explicou que, no passado, houve uma migração de Tremembés de Almofala para a Praia do Futuro e, provavelmente, Dona Teixeira era uma delas. Esse livro veio muito dessas fontes, dessas pessoas e da pesquisa histórica, é um compilado de muitas vozes.
O Oração Para Desaparecer é um livro que pauta muito a busca da personagem pelo resgate da própria identidade, das memórias e do lugar de onde ela veio.
Acho que a gente viveu momentos horríveis, além da pandemia, nos perguntando o que é ser brasileiro no fim das contas, tínhamos orgulhos muito bem fundamentados, e isso foi se perdendo. Quando a personagem pergunta o que é ser brasileira, porque é a primeira coisa que ela descobre sobre si, por causa do sotaque. Para mim ficou essa pergunta e a necessidade de reconhecer que nós somos uma nação fruto de um processo de colonização muito violento, com marcas e só vão diminuir ou se apagar quando esse passado for aceito, incorporado.