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Achados & um perdido 

Na contramão de quem perde e depois acha, há quem acha, mas, em seguida, perde

Por Humberto Werneck
Atualização:

Por mais recheada que estivesse, e não era esse o caso, minha carteira perdida – assunto, aqui, na semana passada – nem remotamente teria os poderes da madeleine de Proust, o biscoitinho que acendeu no grande escritor francês uma narrativa capaz de prender e encantar o leitor ao longo de seis volumes da melhor literatura. Como tudo é proporcional, ninguém haveria de esperar deste cronista algum à la recherche du portefeuille perdu. Ainda assim, a historinha de perdido & achado da semana passada suscitou manifestações dignas de ocupar, quem sabe, não seis volumes, mas seis parágrafos.

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A maioria das intervenções dizia respeito a São Longuinho, santo achador por excelência. Não exatamente Longuinho, veio precisar o José Augusto, leitor em quem minha prosinha deu vontade de voltar a algo substancioso, a Legenda Áurea, tarugo com mais de mil páginas no qual o beato Jacopo Da Fazio (1228-1298), ou Jacopo de Varazze, reuniu histórias de santos de variada especialidade. 

Longuinho, esclareceu José Augusto, na verdade era Longino – um dos centuriões que vigiaram a Cruz de Cristo no Calvário. Foi ele quem perfurou o flanco do Senhor com sua lança – para instantaneamente converter-se ao cristianismo, quando gotas de sangue do crucificado caíram em seus olhos, curando uma visão deficiente. 

O beato Jacopo de Varazze não nos conta como foi que Longino veio a se tornar esperança para quem perdeu alguma coisa. A Maria Lucia, por exemplo, que recentemente perdeu duas vezes o celular, recuperado, não duvida, graças a São Longuinho. Idem a Wanda e a Denise, “perdedeiras” contumazes de suas chaves. A Suzana ficou balançada, mas segue preferindo recorrer ao Neguinho do Pastoreiro, a quem muito deve – assim como deve o Adriles a certa Dona Geralda, de seu exclusivo altar de família.

Suzana não sabia que seu Neguinho é corruptela de Negrinho, do mesmo Pastoreio. Considerando que ambas as denominações se tornaram politicamente incorretas, chegamos os dois à fórmula Infante Afrodescendente do Ramo Pastoril. O problema, diz a leitora, é que o intercessor em questão, se invocado nesses termos, talvez ache que não é com ele a coisa. 

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Também o cronista, incréu empedernido, nesse episódio veio a se lembrar de outros achadores, a ele apresentados pela prima Sílvia, pessoa das mais talentosas e criativas, com a qual compartilhou infância e adolescência. 

Ela costumava invocar duas entidades espirituais multiúso, nenhuma das quais canonizadas, cujas datas de nascimento e morte jamais foram encontradas, pela simples razão de que os operosos Antônio Maranhão e Policena Mascarenhas jamais existiram. 

Devo igualmente à Sílvia o conhecimento de J. Müllinger, autoridade em qualquer assunto, que ela costumava citar em provas no colégio ou faculdade – sem que nenhum professor ou professora, naqueles tempos pré-internet, tenha jamais passado recibo de ignorância. Nem preciso dizer que também eu passarei a invocar, além do ilimitado saber de J. Müllinger, o faro certeiro do Antônio Maranhão e da Policena Mascarenhas, assim como de São Longuinho e do Neguinho do Pastoreiro – mesmo sabendo que nenhum deles, por influente que seja, dará conta de atender a meu pedido mais premente, o de trazer de volta a prima que tanta falta me faz.

***

A novela da carteira fez regurgitar em mim a lembrança de uma história da qual fui testemunha em seus tempos de Paris, na remota juventude. Sinal de que não anda tão mal assim a cabeça de quem há dias desembarcou de um táxi e lá esqueceu a carteira, felizmente recuperada.

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Estava eu, uma noite, num café do Quartier Latin, em companhia de um amigo brasileiro. A certa altura, o camarada, que aqui vamos chamar de Mota, precisou ir lá dentro para proceder àquilo que Pedro Nava chama de “exoneração”. A palavra, no contexto, dispensa explicação, mas não custa sacar a etimologia do verbo exonerar, cuja raiz latina remete a “descarregar um navio”, ou, na acepção que aqui nos interessa, “aliviar”.

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Pois bem, foi lá dentro o Mota, e por certo não exonerou o que precisaria, pois voltou pouquíssimo tempo depois, tomado, agora, por outro tipo de urgência: “vambora, vambora” – instou, nervosamente, e sem tardança levantou acampamento, arrastando-me com ele. Para meu pasmo, abriu a sua legendária mão fechada e pagou a minha parte. 

Só depois de dobrarmos a esquina ele me contou que não chegara a exonerar, pois viu no chão do toalete uma obesa carteira de couro. Numa espiada sumária, constatou que havia ali o triplo do que o governo francês pagava mensalmente a cada um de nós como bolsistas. 

“Vai ficar com o dinheiro?” – perguntei – e, espírito de porco que às vezes sou, recitei o artigo do Código Penal que define como crime a apropriação de coisa achada. “Vou, seu invejoso” – rebateu ele. Pediu que esperasse na porta de uma loja de conveniência, de onde saiu com um queijo e um vinho: presentes “para o amigo pobre”, tripudiou, “a título de consolação”. 

Na noite seguinte, dessa vez sem chope, ele me contou o desfecho da história. Movido por sua inelutável curiosidade, o Mota não dera conta de simplesmente extrair o dinheiro e jogar fora o resto. Alta madrugada, sem conseguir pegar no sono, acendeu a luz, abriu a carteira – e topou com esmaecidos, patéticos retratos de um casal de velhos. Sentiu o coração apertar-se. O nascer do dia o encontrou, roído de culpa, a contemplar um pequeno cartão com endereço. 

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Ainda era cedo quando seguiu de metrô até o final da linha, e precisou caminhar um bocado até o destino. Não, monsieur fulano não estava, informou a criatura que atendeu à porta, ele tinha sido hospitalizado na noite anterior, depois de levar um tombo e ter seus pertences furtados – infortúnio adicional para quem, duas semanas antes, perdera muito mais, sua companheira de vida. 

A mão do Mota, como autômato, foi ao bolso e de lá trouxe a carteira, à qual ele teve o escrúpulo de restituir o que gastara no café e na loja de conveniência. Quanto a mim, depois de ouvir o seu relato, só me restou convidar o amigo, a título de consolação, para um vinho e queijo em minha casa.

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